A música ritual como símbolo


Eurivaldo S. Ferreira


Em se tratando de cantar e tocar uma música ritual, se esta música possui a faculdade de realizar a união de todas as vozes da assembléia, na unidade de uma mesma melodia, esta mesma comunhão sonora de vozes diferentes parecerá aos Padres da Igreja como o símbolo de uma realidade mais profunda[1]. Portanto, para eles, o canto comunitário é a manifestação externa da união dos corações na mútua caridade, é sinal da fraternidade espiritual entre os todos os membros da assembléia, reunida em culto[2]. E acrescentam: o canto enquanto uníssono ainda é um símbolo mais expressivo da unidade espiritual da assembléia litúrgica, cuja imagem retrata o uníssono dos corações[3].

É também São João Crisóstomo que afirma que no canto a uma só voz há uma realidade simbólica da Igreja, que de muitos membros forma um só corpo. Outros Padres foram unânimes em afirmar que o canto ritual, por ser uma atividade agradabilíssima ao homem, exerce um extraordinário serviço à atualização da palavra de Deus; torna-se sinal da alegria e do amor cristão; manifesta a expressão eclesial na união da caridade cristã; é o símbolo do sacrifício espiritual do cristão[4].

Esta mentalidade da música ritual representada pela unidade simbólica transcorreu os tempos e está presente na liturgia, mais precisamente selada no prefácio da Oração Eucarística, justamente apontando a realização do canto da terra, na imitação perfeita do canto dos anjos no céu, freqüentemente apresentados no cantando a uma só voz, antes da aclamação do Santo.

Para Santo Ambrósio, a relação do canto ritual com o sagrado tem a característica de nos colocar em comunhão com o mistério, com a realidade divina, mas também com nós mesmos e com os demais, de maneira que podemos formar um coro de homens sagrados[5].

Para Basurko, quando cita Bonsirven, as imagens e os símbolos humanos tratam de expressar de alguma forma essa realidade intangível, deixando sempre na escuridão uma parte dela. A linguagem simbólica fica, muitas vezes, irredutível ao pensamento logicamente formulado, às afirmações abstratas ou simplesmente conceituais; então permanece, em parte, incomunicável. No entanto, percebe-se por meio dela uma indicação ou uma orientação do sentimento, da imaginação e do pensamento que fazem captar em uma linha mais intuitiva a realidade que está presente no autor[6].

Como nossa pesquisa tratará da análise mistagógica da música ritual no tempo do Advento, não nos permitirá aprofundamentos bíblicos deste tema. Porém, destacaremos o livro do Apocalipse, cujo símbolo na forma de canto ritual nele contido, tanto quanto no resto da tradição, é assumido principalmente, e como em primeira linha, enquanto comunitário, como canto entoado pela assembléia em comum e dentro de um quadro litúrgico[7].

Assim, podemos concluir que, como símbolo, a música, o canto ritual representam a expressão da união da assembléia, estabelecendo a igualdade entre todos os membros, superando as diferenças de idade e de condição social por meio da entoação comum de uma mesma melodia[8].

O canto litúrgico (ritual) como símbolo sempre foi considerado como o mais adequado para transcrever a realidade do além, destaca Basurko. Desta forma, já que dissemos que o Advento nos é dado como um tempo mais intenso de se proclamar a vinda do reino de Deus em nosso mundo, o canto presente no Apocalipse, nos aponta para a realidade desse reino. Realidade caracterizada pela espera de uma vida plenamente feliz e perfeita, mas que ainda é oculta ao homem, enquanto passa pela terra. Vivendo a contemplação do mistério deste tempo, o canto ritual nos ajuda a compreender essa dimensão, a de piedosa e alegre espera.

[1] BASURKO, Xavier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Ed. Paulus, 2005, p. 103. Coleção Liturgia e Música.
[2] Ibid, p. 104.
[3] Ibid, p. 104.
[4] Ibid. p. 225.
[5] Ibid, p. 108.
[6] Ibid, p. 224.
[7] Ibid, p. 224.
[8] Ibid, p. 107.

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