O rito da imposição das cinzas: uma ação gestual como caminho pedagógico da fé
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A imagem do Filho Pródigo, de He Qi, artista chinês, é a que uso para ilustrar meu artigo, reportando o retorno à condição batismal, o seio do Pai, imagens tão propícias do tempo quaresmal. |
Eurivaldo Silva
Ferreira[1]
Introdução e contexto histórico
do rito
No início da Quaresma,
o símbolo das cinzas, imposto em nossas cabeças numa ação ritual, lembra-nos da
caducidade da vida humana (somos pó e ao pó retornaremos).
A oração que invoca a
bênção de Deus sobre as cinzas lembra aquele antigo sinal dos penitentes:
cobrir-se de cinzas enquanto permaneciam ‘afastados’ da comunidade:
Ó Deus, que vos deixais comover
pelos que se humilham e vos reconciliais com os que reparam suas faltas, ouvi
como um pai as nossas súplicas. Derramai a graça da vossa bênção sobre os fiéis
que vão receber estas cinzas, para que, prosseguindo na observância da
Quaresma, possam celebrar de coração purificado o mistério do vosso Filho. Por
Cristo, nosso Senhor. Amém[2].
Nas comunidades
primitivas, os primeiros cristãos, quando cometiam algo grave, eram expulsos da
comunidade. Eram denominados de pecadores ou penitentes públicos, por isso a
necessidade de penitenciar-se para poder voltar ao seio da comunidade. Eles
costumavam se cobrir de cinzas do lixo. Era um sinal visível do penitente que
expressava a ideia de que algo foi queimado. No fundo, a imagem é a de que
somos transitórios aqui na nossa existência, por isso aquilo que não presta, o
lixo, deve ser queimado, ser deixado para trás.
Na quinta-feira da
última semana da Quaresma, o bispo acolhia esses penitentes, eram apresentados
à comunidade e participavam da celebração da Ceia do Senhor. Não eram mais
considerados ‘excomungados’, e retornavam ao seio da comunidade cristã. Nas
Constituições Apostólicas há relatos de orações sobre os penitentes durante a
liturgia, e assim que isso acontecia, eram convidados a retirar-se do templo,
pois ainda continuavam percorrendo o caminho da iniciação à vida cristã[3].
Seguindo a tradição dos
séculos anteriores, no século V Ambrósio introduziu uma liturgia para a chamada
‘reconciliação dos penitentes’, sobretudo na quinta-feira da Ceia do Senhor,
pela manhã, ocasião em que, depois de terem cumprido sua penitência, eram
admitidos novamente à comunidade de fé[4].
No tempo da Quaresma,
Agostinho insiste de modo particular na preparação dos catecúmenos, ocasião em
que os exorcismos substituem a prática da reconciliação dos penitentes, por
força do ordinário romano, constando então de um terceiro elemento que torna visível o
fim da Quaresma[5].
No séxulo X Reginão de Prum desenvolveu um rito próprio para a imposição das cinzas
nos penitentes na Quarta-feira de Cinzas e seu regresso à comunidade na
Quinta-feira Santa, completando-o com as fórmulas do Pontifical
romano-germânico[6].
O gesto da imposição
das cinzas passou para toda a comunidade a partir do decreto do papa Urbano II,
no século XI, lembrando o sentido da conversão[7].
O rito da imposição das
cinzas surge da tradição bíblica, e é conservado até hoje na prática eclesial,
indicando a condição de pecador do ser humano, ao mesmo tempo em que este
confessa a sua culpa diante de Deus e exprime sua vontade de conversão
interior, na esperança que o Senhor seja misericordioso para com ele[8]. O rito era destinado
apenas a pecadores públicos, mas foi estendido a todos os fieis, no intuito de
fazer com que todos se sentissem no dever de confessar os pecados e fazer
penitência[9], mas ele alcança sua meta
na celebração do sacramento da Penitência e Reconciliação nos dias antes da
Páscoa[10].
Um olhar sobre o rito e sua densidade teológica
A vontade da ação de
Deus em querer se reconciliar com aqueles que passaram pela prova de fogo da
penitência é o centro teológico da oração, isto é, o reencontro conciliador com
aquele que deseja o seu retorno à condição primeira. De fato, no Salmo 50, o
salmista pede para que ‘Deus não retire dele o seu santo espírito’, isto é, que
ele continue a ter a intenção de uma vida moral e espiritual.
O tema da
reconciliação, tratado como ‘mistério’, pelo qual é exercido por Jesus Cristo,
é recordado por Paulo na 2ª leitura desta noite (2Cor 5,20-6,2) e retomado na
2ª leitura do 4º Domingo da Quaresma – Ano C, citando agora os trechos dos
versículos 17 a 21, no qual diz que por Cristo, “tudo agora é novo”,
significando a transformação da vida espiritual operada pela morte de Cristo,
como a novidade, a volta do exílio e esperança de um mundo novo (cf. Is 65,17)[11], por sua vez, a vontade
da reconciliação humana querida por Deus, que ouve nossas súplicas como um pai.
O sinal sacramental que
conduz a assembleia a um entendimento pedagógico-espiritual do sentido do
retorno é dado pelo gesto do recebimento das cinzas sobre aqueles que dela
receberem, lembrando que, neste processo – conforme segue a própria oração –
neste tempo em que farão memória de sua condição de pecador, possam ‘prosseguir
na observância requerida pelo próprio tempo da Quaresma’ (Oração Coleta do 1º
Domingo), praticando as obras da caridade (cf. Prefácio da Quaresma I),
despojamento[12]
e permanecendo firmes na oração (cf. Oração Coleta do 3º Domingo). Só assim é
que “poderão celebrar de coração purificado o mistério pascal de Jesus Cristo”
(Oração Coleta do 2º Domingo e Prefácio da Quaresma I).
Segundo a Tradição, os
que presidiam o rito da imposição das cinzas, choravam pelos penitentes que em
breve seriam ‘afastados’ da comunidade. No Missal reformado pelo Concílio Vaticano
II, o ato de comover-se ou chorar foi introduzido como sendo uma ação de Deus na
oração de bênção sobre as cinzas, e não mais uma atitude daqueles que presidiam
a celebração, o que poderia, em nossa opinião, ser considerado como um teatro:
“Ó Deus, que vos deixais comover pelos que se humilham”. Portanto, o início da
oração é um chamativo bem propício ao tempo, pois no gesto da humilhação (a
confissão dos pecados e o reconhecimento do ser pecador) encontra-se o sentido que
podemos chamar de escatológico: o de que Deus quer reunir no final dos tempos a
comunidade dos justos, tendo em vista a declaração final da glorificação do
Filho (cf. Lumen Gentium, 2, 51 e 69).
Na frase seguinte da
oração, em que afirma que ‘Deus se reconcilia com os que reparam suas faltas’,
encontra-se a atitude espiritual do gesto daquele que é considerado pecador,
isto é, o reencontro conciliador com aquele que deseja o seu retorno à condição
primeira. De fato, no Salmo 50, o salmista pede para que ‘Deus não retire dele
o seu santo espírito’, isto é, que ele continue a ter a intenção de uma vida
moral e religiosa.
Trabalhado na catequese
dos Pais da Igreja, o gesto da reconciliação também estava ligado a uma atitude
penitencial, como a de pedir desculpas ao outro, por exemplo. No percurso da
vida, era um gesto exigido moralmente pelos Pais da Igreja, até mesmo em
situações de perigo iminente de morte[13].
Com essas duas atitudes
ligadas a Deus (reconciliação e reparação), é que o presidente convida a
assembleia à escuta, simbolizada pelo gesto do recebimento das cinzas.
O Missal Romano propõe
duas possibilidades de oração de bênção das cinzas. Numa das opções de oração
do Missal Romano a bênção de Deus é solicitada para que se derrame sobre os
fiéis que receberão as cinzas, e não sobre as cinzas. A outra possibilidade
pede que Deus abençoe as cinzas.
Embora o Missal Romano
apresente essas possibilidades, no texto que antecede a oração inicial, quem
preside pede a ‘Deus Pai que abençoe com a riqueza da sua graça estas cinzas,
que vamos colocar sobre as nossas cabeças em sinal da penitência’. Em nosso
entendimento, a primeira opção dada pelo Missal Romano é a mais adequada, uma
vez que entendemos que o texto litúrgico nos trate como pecadores, ao mesmo
tempo não invalida a graça recebida por ocasião do nosso batismo. Neste caso, a
liturgia não usa o sinal cósmico para representação da sacramentalidade, mas nos
remete a um princípio pedagógico para explicar-nos a experiência da graça, isto
é, viver como seres reconciliados é viver com a lembrança da eterna páscoa em
nós, a lembrança do batismo.
As cinzas nos remetem à
lembrança de que somos pó. Saber que somos pó é símbolo da destruição (os
grãos, quando moídos, podem ser reduzidos a pó, por exemplo). Sabendo disso, o
rito nos faz conscientes de sermos merecedores da graça. O próprio Missal
Romano traz uma nota de rodapé em que especifica e justifica a escolha tanto de
uma como de outra oração, pois as duas têm função e significado diversos.
A imposição das cinzas e o rito
aplicado à vida
O sinal sacramental que
conduz a assembleia a um entendimento pedagógico-espiritual é dado pelo gesto
do recebimento das cinzas sobre aqueles que dela receberem, lembrando que,
neste processo – conforme segue a própria oração – neste tempo em que farão
memória de sua condição de pecador, possam ‘prosseguir na observância requerida
pelo próprio tempo da Quaresma’ (praticando as obras da caridade, despojando-se
e firmes na oração). Só assim é que ‘poderão celebrar de coração purificado o
mistério pascal de Jesus Cristo’.
A visão externa do
gesto simbólico da imposição das cinzas remete à conversão, ou seja, que se
faça um roteiro para uma mudança de vida (nas atitudes), é o apelo solícito da
Igreja para o retorno ao marco inicial da fé (o fato de reconciliar-se com Deus,
imagem prefigurada pelo batismo). Em outras palavras podemos até usar a
pedagogia da imagem da mãe que educa o filho no caminho do bem, ao recomendar
aquelas orientações que são próprias do ser maternal, preocupando-se o tempo
todo com o bem-estar do filho.
Na pedagogia contextual
da celebração da Quarta-feira de Cinzas, que abre o tempo da Quaresma, ao
analisarmos a oração da Liturgia da Penitência, entendemos então que celebrar a
reconciliação é marcar a atitude espiritual expressa pelo tempo. Portanto, o
que se experimenta na ação litúrgica pode e deve ser levado para a vida[14].
O rito tem ressonância
em todo tempo quaresmal, sobretudo no 1º Domingo da Quaresma, a PCFP faz uma
leitura pedagógica do sinal sacramental de nossa conversão, ao sugerir que não
se falte neste domingo os elementos que sublinham essa atitude, e cita como
exemplo o canto da ladainha de todos os santos na procissão de entrada na
celebração deste dia.
Expressando no canto da
ladainha os sinais da conversão, encontramos no exemplo dos santos e santas
aqueles que souberam “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder
a seu amor por uma vida santa”, conforme diz a Oração Coleta do 1º Domingo da
Quaresma. Da mesma forma, são estes que, tendo em sua vida desejado o Cristo
através do sinal do pão eucarístico, souberam devotar as suas vidas nutridos
pela fé, esperança e caridade, ao mesmo tempo vivendo de toda palavra que sai
da boca de Deus, conforme diz a Oração depois da comunhão deste domingo.
Enfim, a Igreja se serve de práticas
adequadas para completar a formação do povo fiel. Essas práticas têm origem e
fundamentação na Palavra de Deus e estão coadunadas com a lembrança do mistério
pascal no decorrer das celebrações ao longo do Ano Litúrgico (cf. Sacrosanctum Concilium,
105). Encontramos aqui um veio pedagógico já intuído na eucologia e nos ritos
da Igreja, que finca suas raízes na Sagrada Escritura. É dos ritos que tiramos
nossa força de sustentação na fé e a aplicamos à vida.
Fiquemos com as
recomendações dos Sermões do papa Leão Magno que destaca algumas
características deste tempo quaresmal:
[A Quaresma] é um tempo em que se comemoram de modo
especial os mistérios da redenção humana pela páscoa, por isso devemos nos
preparar com a maior diligência por meio da purificação espiritual; é próprio
da festa da páscoa fazer com que toda a Igreja se alegre com o perdão dos
pecados (tanto os que serão batizados quanto os que pertencem à comunidade de
fé); aquilo que se pratica a todo tempo, é agora solicitado a praticar com
maior dedicação: jejum e obras de misericórdia[15].
[1] Mestre em Teologia pela
PUC/SP, com concentração em Liturgia. Especialista em Liturgia, pelo IFITEG-GO.
Formado em Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção da PUC/SP. Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica.
[2]
Missal Dominical, Missal da assembleia cristã, p. 144
[6] cf. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do
primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, pp.
1488-1490.
[9]
Comentário inicial da Missa de Quarta-feira de Cinzas do Missal Cotidiano,
Edição de 1947, p. 161.
[11] Missal Dominical (Missal da Assembleia cristã).
São Paulo: Paulus, 1995, 6ª edição, p. 144.
[12] O despojamento é consequência do jejum: A
recomendação do jejum, tomada da tradição bíblica, é uma atitude de
despojamento que agrada a Deus, e que ao mesmo tempo nos aproxima dele. No
século II, Barnabé, um doutor da escola de Alexandria, recomendava o jejum
assim como estava prescrito em Is 58,4-5. 6.10 (cf. Antologia litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos
do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p.
118).
[13]
Cipriano, século III. In: Antologia Litúrgica. Textos do primeiro milênio.
Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, p. 297.
[14]
É o que recomenda o nº 10 da SC: “conservem na vida o que receberam pela fé”.
[15] cf. Antologia Litúrgica, Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio.
Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, pp. 1026-1028.
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