Música ritual no Tempo do Advento

Eurivaldo S. Ferreira


A dimensão da piedosa e alegre espera nos sugere um canto[1]

1. Ó vem, ó vem, Emanuel! És a esperança de Israel! Promessa de libertação, Vem nos trazer a salvação!

Dai glória a Deus, louvai, povo fiel, virá em breve, o Emanuel.

2. Ó vem aqui nos animar, as nossas vidas despertar, dispersas as sombras do temor, vem pra teu povo, ó Salvador!

3. Ó vem, Rebento de Jessé, e aos filhos teus renova a fé, que possa o mal dominar e sobre a morte triunfar!

4. Vem, esperança das nações, habita em nossos corações, toda discórdia se desfaz, Tu és, Senhor, o rei da paz!

O “Ó Vem, Emanuel!”, que ressoa no canto de abertura dos domingos do tempo do Advento, tem íntima ligação com o cântico de Miriam ou de Moisés, depois da passagem do Mar dos Juncos (Ex 15). O seu completar dá-se somente no Apocalipse, com o Canto do Cordeiro (Ap 15,2-4). Os Padres da Igreja deram uma importante interpretação para estas duas passagens, as quais traduzem como “cântico novo”, a expressão da manifestação da glória de Deus, ora salvando seu povo das garras dos opressores, ora vivificando seu Filho, o Cordeiro puro e santo, merecedor de toda glória e adoração.

É a compilação, contida numa composição, das formas do homem viver hoje. Por exemplo, na tradição judaica, aguardava-se um salvador, um messias. É a realização sempre benéfica da vontade de Deus para com seu povo, daí nasce a alegria de cantar a esperança, a expectativa da espera, ou ainda o agradecimento pela obra acontecida naquele momento para determinado grupo ou povo.

O canto ritual pode ainda manifestar situações de descontentamento e repulsa. É que ocorre na letra do salmo 137(136), o povo hebreu oprimido pelo faraó no Egito, fazendo como que uma espécie de “greve” musical, pendurando seus instrumentos musicais, recusaram-se a cantar para os seus malfeitores. Assim, podemos traduzir esse momento histórico na seguinte explicação:

Ora, como é que podemos cantar um canto novo em terra estrangeira, em meio a essa situação de miséria e de dor, de opressão e de destruição? Qual é o prazer que essa música da nossa tradição nos permitiria em meio a essa situação?

O salmo 137 fala mais precisamente de harpas, instrumentos musicais que acompanhavam os cantos e as festas dos judeus. Logicamente, um povo escravo não tem motivos para festejar, por isso desistem de tocar. Para Bortolini[2], a explicação mais óbvia é que, a situação é ainda mais grave porque os opressores exigiam que cantassem cantos de Sião, a fim de conhecer algo do folclore judaico. Ou, quem sabe, para oprimir psicologicamente os exilados, pois os cantos dos judeus (“cantos de Sião”) celebram, sobretudo, a memória dos atos libertadores de Javé, que habita em Sião[3].

É aí que encontramos a perfeita manifestação de coesão do Deus que salva seu povo, e de um povo que espera e reconhece a salvação que vem de Deus. Podemos dizer aqui que este povo oprimido já tinha consciência da ação de Deus que viria para libertá-lo das mãos dos malfeitores, por isso a recusa do canto. Neste sentido seu cantar torna-se uma ação mentirosa, ou seja sua música não realiza aquilo que pretende. Então podemos dizer que esta música não possuirá a realidade simbólica para qual foi composta e a qual pretende ser interpretada. Portanto, tem o canto ritual, a música ritual, o desejo de manifestação da vontade de Deus e do sagrado, isto é, quer a salvação, a alegria, e não a opressão e a dor.

É ainda o canto novo nascido da boca de Jesus, ao recitar e cantar salmos e orações de seu tempo e da tradição judaica. É o mesmo Jesus que, morrendo, ressurge para a vida. É ainda o cântico que nasce da boca de Maria, aquela que, cujo seio virginal da Filha de Sião germinou aquele que nos alimenta com o pão do céu e garante para todo o gênero humano a salvação e a paz[4]

O Apocalipse nos relata que o transcorrer do homem na realidade que há de vir é de alegria e repouso. Ao mesmo tempo em que descansam de suas fadigas, os quatro seres Vivos não cessam de repetir dia e noite o louvor de Deus três vezes Santo[5], e a grande multidão, vestida de branco com palmas na mão, está diante do trono de Deus, cantando o Hosana e servindo-o dia e noite[6].

É esta realidade que podemos chamar de dimensão simbólico-sacramental, em que, celebrando ao Pai, a memória do Filho, da sua paixão que nossa salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu, e enquanto esperamos a sua nova vinda, urge reforçar as celebrações do Ano Litúrgico, a fim de que estas se tornem símbolos de unidade e comunhão com o Mistério do Senhor, até que Cristo seja tudo para todos[7].

Portanto, viver o Ano Litúrgico, mais precisamente o tempo do Advento, é voltar-se para o Senhor, acreditando na sua vinda, independentemente de nossa conversão, apressando-nos e preparando-nos, tornando-nos atentos aos seus sinais.

É desta forma que o Evangelho nos adverte, no sentido de ficarmos atentos, pois não sabemos quando será o momento em que o Filho do Homem voltará, se no meio da noite, como um ladrão ou logo de manhã, quando o galo cantar[8]. Assim, o canto ritual deste tempo está repleto dos sinais e símbolos manifestos de sua segunda vinda, pois, caminha ainda o homem, imperfeito, não completo, e é esse canto que o ajuda a entender e a interpretar a presença do Cristo no meio de seu povo.

Ainda, faz-se necessário a reflexão do conteúdo da plenitude do homem no final dos tempos. Da mesma forma que o homem, enquanto caminha na terra, em seu canto ritual estão contidas essas características, assim, na plenitude dos tempos, será desaparecido de seu canto a súplica e a oração, tão freqüente nos salmos, não tendo nenhuma razão de existir na Jerusalém celeste, onde todo o pranto e preocupação terão desaparecidos[9], pois, dada sua vida terrena, o homem cuja vinda do Senhor espera, celebra com canto e dança a expectativa de sua volta. O que se pode concluir que a função votiva, dentre outras, características participantes do canto ritual do tempo do Advento, tem aí seu desaparecimento diante do conhecimento face a face de Deus[10].



[1] Autor desconhecido. Ó vem, ó vem, Emanuel! CD Oração da Noite. Paulinas: 2002, faixa nº 2, 3'44 .
[2] BORTOLINI, José. Conhecer e rezar os salmos. Comentário popular para nossos dias. São Paulo: Ed. Paulus, 2000, p.566. Coleção A Bíblia e o povo.
[3] Cf. Sl 76, 84 e outros.
[4] Cf. Prefácio do Advento II A. Missal Romano.
[5] Cf. Ap 4,8
[6] Ap 7,9-16.
[7] SIVINSKI, Marcelo. Ano litúrgico como realidade simbólico-sacramental. São Paulo: Ed. Paulus, 2002, p. 13. Série Cadernos de Liturgia nº 11.
[8] Cf. Mc 13,33-37.
[9] BASURKO, Xavier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Ed. Paulus, 2005, p. 103. Coleção Liturgia e Música.
[10] Cf. 1Cor 13,12; 1Jo3,2.

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