A Quaresma como itinerário pascal
Eurivaldo Silva Ferreira[1]
Ano Litúrgico: itinerário pedagógico da fé
Diz a Lumen gentium que uma das preocupações
da Igreja é fazer com que seus fiéis se aproximem da graça salvadora de Cristo
(LG, 1-8). Os fiéis fazem isso toda semana, no domingo, justamente denominado Dia
do Senhor, celebrando a ressurreição de Cristo, também de maneira mais especial
no período do Tríduo Pascal. Logo, quem participa das ações litúrgicas, entra
em contato com a riqueza das virtudes e méritos de Jesus Cristo, por isso o
mistério de Cristo anunciado e vivido ao longo de um ano, através da liturgia
celebrada, possibilita a quem crê a plenitude da graça da salvação.
Toda ação de
Cristo operando em prol de sua comunidade de fé, orante e reunida em
assembleia, ocasião em que toma contato com a pregação, a vivência e o anúncio
do Reino de Deus feito por Jesus, é um itinerário pedagógico, o qual chamamos
de Ano Litúrgico.
O Ano Litúrgico, vivido como sinal sacramental da atuação do
Cristo que se mostra com toda a sua força atuante, alimenta a piedade dos fiéis.
Ele possui força sacramental, segundo o dizer do papa Paulo VI. É em torno desse mistério da nossa fé que
também aguardamos a feliz vinda do Cristo, no reino futuro. Enquanto ele não
vem, nós o aguardamos nas nossas ações do cotidiano e também celebrando o
mistério pascal nas nossas liturgias. Portanto, podemos dizer que no Ano Litúrgico
vivemos o sacramento da espera, unindo nosso cotidiano na oferta do próprio
Cristo, até que um dia, por Cristo, com
Cristo e em Cristo, Deus venha a ser tudo em todos.
Nesse sentido, os ritos contemplados na ação litúrgica nos
dão a possibilidade de vivermos o Mistério Pascal, não como estranhos ou
simples expectadores, mas como participantes conscientes, piedosos e ativos. É
esta a natureza frutificadora da ação litúrgica, ela tem a preocupação de
colocar o ser humano em relação com o Mistério Pascal: morte e da ressurreição
de Cristo, em quase todas as ocasiões da vida, pois, do mistério pascal derivam
a graça e força pelas quais se santificam os fiéis bem dispostos, diz a Sacrosanctum Concilium.
Mas não basta apenas isso. Para que a liturgia exerça
realmente sua força de contato com o Mistério Pascal, é necessário que todos os
que desejam manifestar o louvor a Deus e também se santificar, tenham
possibilidade de participar ativa, plena, frutuosa e conscientemente.
A ação litúrgica é tornar
célebre um acontecimento, perpetuando-o
Sempre que recordamos um acontecimento, nós o fazemos através
de lembranças deste mesmo acontecimento. Por isso a celebração, que deriva da
palavra ‘célebre’, é o meio eficaz de fazermos isso. Tudo feito por meio das
ações simbólico-sacramentais, isto é, celebramos com ritos, preces, símbolos e
ações gestuais, para fazer memória do evento Mistério Pascal de Cristo, o
acontecimento mais importante do cristianismo.
Todo domingo, na celebração eucarística, por força dos
ritos e das preces, das orações e das louvações, nós tornamos célebres aqueles
gestos de Jesus realizados na última ceia: sua entrega pascal, realizada de
forma ritual na noite da quinta-feira santa e na forma de sua entrega
sacrificial, seu corpo crucificado e morto na sexta-feira da paixão, além de contemplarmos
o vazio no sábado da sepultura e comemorarmos a ressurreição, na madrugada do
domingo. Repetindo os ritos, com consciência do que estamos fazendo, aprofundamos
seu sentido, ou seja, aquilo que eles mesmos expressam, a nossa fé. Desta
forma, a liturgia cristã, na qual fazemos memória pascal, passa por esse
prisma, ela mesma representa esses fatos, de uma forma ritual, e, revivendo-os,
fazendo memória, nós a tornamos viva e a qualificamos de forma perene.
A força pedagógica do
período Quaresmal

Por sua força sacramental, o tempo quaresmal nos coloca em
prontidão para a escuta da Palavra e a oração, elementos essenciais que devem
ser vividos também ao longo de todo Ano Litúrgico, mas que a Igreja chama para
uma atenção particular e mais atenta neste tempo. Então, a ação memorial do
batismo, nós a realizamos escutando a Palavra, orando em comunidade e
celebrando na mesa comum a memória pascal do próprio Cristo.
Nas comunidades primitivas era também ocasião em que os
catecúmenos, aqueles que eram iniciados na fé, podiam ser preparados para
receber o sacramento do batismo, um dos que fazem parte dos chamados
‘sacramentos da iniciação à vida cristã’. No período quaresmal, os catecúmenos
viviam o tempo chamado de ‘purificação’ e ‘iluminação’, o que os consagrava a
preparar-se mais intensamente o espírito e o coração, examinando suas
consciências e com atitudes penitenciais para a vivência sacramental.
Na Quaresma, os fiéis já batizados, assim como os
catecúmenos, se dispõem para a celebração do mistério pascal, a cada domingo,
ao mesmo tempo, visualizando e tendo como meta a grande celebração do Tríduo Pascal.
O sentido próprio de cada celebração, se bem vivido, nos
proporciona uma real adesão à fé, fazendo com que apreendamos aquilo que é
essencial na Igreja, com sua força pedagógica. Cada gesto, cada ação ritual, comporta um sentido
teológico, no qual deve ser aprofundado com conhecimento de causa, mediante a
qualidade com que se é realizada e celebrada, até provocar nos celebrantes
(todos nós somos os agentes da celebração, por isso somos todos celebrantes)
uma atitude interior e espiritual, abrindo-se para o compromisso com a vida.
O sentido do itinerário pedagógico para a nossa vida

Da consciência de nossa
incapacidade de vivermos o projeto do Reino surge o desejo da conversão e da
mudança interior, por isso um sinal externo nos é apontado como que sendo uma
força que impulsiona a direção da mudança.
Na comunidade primitiva a
conversão então é tida como um estado penitencial em que aqueles que estivessem
aptos para o batismo se comprometiam a refletir sobre a consciência do pecado, tido
como ofensa a Deus. Daí nascia o compromisso de não mais pecar, vivido por um
estado de contínua conversão. De fato, a penitência só tem sentido se
praticarmos as boas obras, tendo em vista o bem maior, seja para mim, seja em
função do próximo.
A Carta Preparatória para as Festas Pascais, de janeiro de 1988,
explicita melhor o sentido da virtude e a prática da penitência, como “partes
necessárias da preparação pascal: da conversão do coração deve brotar a prática
externa da penitência, quer para os cristãos individualmente, quer para a
comunidade inteira; prática penitencial que, embora adaptada às circunstâncias
e condições próprias do nosso tempo, deve, porém, estar sempre impregnada do
espírito evangélico de penitência e orientada para o bem dos irmãos e irmãs”.
A Igreja, da mesma forma que
convoca cada um e cada uma a fazer penitência, ela mesma se coloca nesta ação,
rezando e intercedendo por aqueles que ainda não aderiram a este processo de
conversão, também convocando os seus para aderirem a essa prática e ao retorno
ao sacramento do perdão.
Segundo a Encíclica Dives in Misericórdia (Rico em
Misericórdia), de João Paulo II, a Igreja também anuncia que Deus é todo
misericordioso, e, aconselhando a consciência, baseando-se na Escritura, aponta
sinais de melhorias, ou seja, o ser humano não é capaz de se salvar a si por
sua própria capacidade, por isso ele precisa contar com Deus. A Igreja vê e dá
testemunho da misericórdia de Deus, pelo Cristo anunciado no Evangelho ela
encoraja o ser humano e o introduz no seio da misericórdia de Deus,
professando-a em toda a sua verdade, apoiada na Revelação. Deus penetra no
íntimo do coração do homem e da mulher para transformá-lo/a, assim como fez com
o filho pródigo.
Tempo de caridade mais intensa e de renúncia dos
desejos
São Leão Magno, papa e doutor da
Igreja do século V, fala de um agente externo que quer nos impulsionar ao
pecado, fazendo-nos esquecer da fonte do perdão, o próprio Mistério Pascal,
celebrado e vivido com mais intensidade por ocasião do tríduo pascal. Por isso
também recomenda que ‘entremos na Quaresma com uma fidelidade maior ao serviço
do Senhor’, nesse sentido, o jejum e a caridade são sinais externos para se
vencer o mal, que cada vez mais quer se sobressair em nós.
No Brasil, a Campanha da
Fraternidade, também vivido como um sinal externo de penitência, é um excelente
auxilio para bem vivermos a Quaresma, diz a introdução de todos os textos-base.
O Missal Romano diz que a Quaresma é um tempo de teste para nossa
fidelidade na resposta ao plano de Deus. Pode acontecer que, depois de ter
recebido o batismo, nós percamos essa confiança, por isso esse tempo é propício
para renovar e reavivar em nossos corações as disposições que, durante a
Vigília Pascal, pronunciaremos de novo com as promessas do nosso batismo. As
leituras que ouviremos durante esse tempo nos recordam que somos seres
batismais.
Tempo de amar
profundamente, raiz da nossa condição batismal
Enfim, viver a
Quaresma é saborear o difícil itinerário da passagem da morte para a vida.
Sabemos que passamos da morte à vida se amamos os irmãos, diz São João em sua
primeira carta (1Jo 3,14).
Sobretudo,
devemos lembrar que somos discípulos/as de Jesus, que superou o fracasso humano
da cruz com um amor que vence a morte, e que, de nossa parte, o jejum e a
caridade, traduzidos na solidariedade fraterna em favor do/a outro/a, do mundo,
do planeta e do cosmos, nos colocam nesse mesmo patamar de Jesus, que,
intensificando seu desejo de amar até o fim, passou pelo mal, vencendo-o.
Juntemos o nosso
desejo ao de Jesus. Assim, como diz a regra de São Bento: “com a alegria do
Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa Páscoa”.
[1] Mestre em
Teologia pela PUC/SP, com concentração em Liturgia. Especialista em Liturgia,
pelo IFITEG-GO. Formado em Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora da Assunção da PUC/SP. Membro da Rede Celebra de Animação
Litúrgica e do Corpo Eclesial de Compositores Litúrgicos da CNBB.
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