O dia da Paixão do Senhor: o que esperarmos desta celebração?


         Eurivaldo Silva Ferreira
        
         O Espírito nos devota neste dia a termos a mesma atitude de Maria aos pés da cruz de Jesus, a contemplação e a meditação dos fatos do cotidiano da vida. Em João 19, 25-27, não relata qual foi a atitude de Maria, mas nós podemos intuir: todos os dias morremos e ressuscitamos, nossos corpos e os corpos de tantos sofredores por causa da violência são entregues à morte, muitas vezes por causas banais e com sinais extremistas de violência que beiram a insanidade. Permanecer de pé junto da cruz é permanecer junto daqueles que sofrem essas violências, mártires do cotidiano de sua existência, fazendo suas entregas diárias, ao mesmo tempo rogando ao Pai que os acolha, em sua infinita misericórdia. Perdendo nossos entes queridos, quaisquer que sejam as formas de morte, perdemos o fruto de nosso ventre, assim como Maria, Mas ela, a ‘Mulher’ de pé, a mulher da ‘Hora de Jesus’, como nas Bodas de Caná, passa a abraçar outra vocação, a de ser Mãe da Igreja, e intercedendo por ela.
         A Oração da Coleta deste dia, único elemento dos ritos iniciais da Celebração da Palavra nos recorda que Deus é sempre misericordioso, por isso esperamos que nos santifique por sua constante proteção. A proteção do Senhor é a sombra da cruz de Jesus. É nela que Jesus, antes de morrer, diz: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’ (Lc 23,46). É sob essa proteção que também dizemos nós na oração de Completas, à noite, no responsório breve: ‘Senhor, em tuas mãos eu entrego o meu espírito’. Estêvão, o primeiro mártir, antes de ser apedrejado, também disse essa frase: ‘Senhor Jesus, recebe o meu espírito’ (At 7,59).
         O sentido da oração inicial está em pedir ao Senhor que, na sua misericórdia, santifique e proteja o seu povo, para o qual Cristo inaugurou, em seu sangue, o mistério pascal. Na segunda opção, tirada do texto de 1Cor 15,45-49, pede a Deus que, pela destruição da morte através da paixão de Jesus, sejamos semelhantes a ele, sendo ele mesmo a imagem do homem terreno e do homem celeste, à qual devemos imitar.
         A 1ª Leitura é o quarto cântico do servo do Senhor, o mais rico em ensinamento e o mais importante do ponto de vista teológico. O servo humilde e sofrido é a imagem da comunidade de Israel, também é a imagem de Jesus, levado ao matadouro, inocente e sofredor que morre pelos nossos pecados, silenciosamente. Por sua morte é que recebemos os méritos da vida eterna.
         Pelo Salmo responsorial fazemos nossa a súplica de alguém que sofre e espera, que experimentou a bondade do Senhor e sabe que ele não se cansa de defender os seus fiéis, que conhece bem a atividade dos seus inimigos e dos maus em geral. Sobretudo, em nosso momento de privação e de dor, esperamos confiantes que o Senhor nos liberte das mãos daqueles que querem ver o nosso fim: a doença, a opressão, a fome, a falta de moradia, de emprego, de saúde para todos. A oração de Jesus no jardim das oliveiras lembra esse salmo quando pede ao Senhor que livre todos das forças do mal.
         Lembramos outra vez do Salmo responsorial do Domingo de Ramos: ‘Meus Deus, por que me abandonaste?’. Temos a impressão que Jesus na cruz se torna alguém fracassado. É a mesma impressão que tiveram os discípulos de Emaús, no caminho de volta para casa. Ele perde tudo e se encontra no mais profundo abismo.  Jesus experimentou tudo aquilo que o Salmo 21 diz, revivido agora pelo canto do Salmo 30. Este salmo, articulado com o refrão de Lucas 23,46, encontra perfeito entrosamento como ressonância à primeira leitura.
         Santo Agostinho viu neste salmo a atuação de uma admirável troca entre Cristo e a humanidade. De fato, aquele que não havia rejeitado nos assumir nele e falar a nossa linguagem, também não rejeitou que fôssemos transfigurados nele, para que também nós pudéssemos exprimir-nos com suas palavras. Tendo carregado sobre si aquilo que é nosso, a nossa angústia pousou sobre ele, a nossa fadiga consumiu a sua vida, a nossa miséria gastou a sua força; por nossa causa ele tornou-se um opróbrio (vergonha, desonra, vexame) e foi rejeitado por todos. Nessa miséria e sofrimento, Cristo dirigiu-se ao Pai e invocou piedade e libertação. Assim, depois de ter recebido injúrias e dores e ter sofrido a morte, deu-nos a glória, a saúde e a vida, para que pudéssemos dar graças nele e glorificar a sua bondade.
         As preces, que a Igreja faz intercedendo por todos, está entre as leituras e a veneração da Cruz gloriosa. O intuito é de que se perceba que entre a Palavra de Deus proclamada e o AMOR que vence a morte de cruz, está a Igreja, que ora por todos os seus, tendo como fonte de inspiração a própria cruz, fonte da graça de Deus, de onde ela mesma nasceu, do lado aberto do Salvador estendido na cruz.
         Devemos estar convencidos de que Jesus realmente passou por um desmoronamento radical: ‘esvaziou-se de si mesmo, rebaixando-se’, diz a Carta aos Filipenses. Mas o evangelista João coloca na boca de Jesus palavras que revelam seu domínio sobre a situação: ‘ninguém tira minha a vida, eu a dou livremente’ (Jo 10,18). Jesus é para João uma espécie de ‘diretor de cena’ que tem domínio da situação. Temos aí um salto qualitativo: um amor que consegue enxergar uma liberdade, própria de quem ama, pois quem ama não aprisiona, pelo contrário, liberta. Há uma antiga compreensão de que o corpo serve como aprisionamento da alma, e que este servia como impedimento à liberdade da alma. Em Jesus, seu corpo estendido na cruz é agora considerado como instrumento para o voo ao alto, e não mais como inimigo. É na cruz que seus braços abertos abraçam o corpo do mundo, como sendo seu próprio corpo, numa total liberdade de entrega.
         O nosso beijo na cruz não é simplesmente um ato de devoção. Mas é uma reverência ao AMOR que venceu a morte. Abraçamos e beijamos a nossa própria cruz: aquelas ‘passagens’ (‘paixão’) da vida que nos reduziram a zero, mas que ao mesmo tempo nos indicaram outro caminho possível. Que sejamos habitados/as pelo que nos mantém de pé. “A única coisa que não podem tirar de nós é aquilo que doamos” (J. Y. Leloup).
         Na oração pós-comunhão pedimos a Deus que conserve em nós a obra da sua misericórdia, para que, pela participação deste mistério, nós consagremos sempre a nossa vida a Deus.

         O mistério contemplado neste dia é o mistério da entrega do Senhor, também completado pelo mistério da nossa entrega individual, mas também a entrega de toda a Igreja reunida para ouvir sua Palavra e interceder por todos, a partir da imagem da cruz.

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