Vivendo o Tempo da Quaresma como itinerário pedagógico da fé
Eurivaldo
Silva Ferreira
Introdução
Ao tomarmos o
Tempo da Quaresma que logo iniciaremos com a celebração das Cinzas como
itinerário pedagógico da nossa fé, pensamos que este tempo é-nos colocado como
sacramento, o que define seu pano de fundo teológico.
A visão
externa deste sinal decorre em duas atitudes: roteiro para uma mudança de vida
(nas atitudes de conversão), apelo para o retorno ao apelo inicial da fé (o
fato de reconciliar-se). Contudo, a Igreja, ao celebrar este tempo, conclama
que a reconciliação consiste em experimentar este sacramento também como
celebração.
O Tempo da
Quaresma se torna então uma oportunidade para experimentarmos o apelo ao marco
inicial da fé, experimentado pelo batismo, já que esse aspecto foi-se perdendo
durante a história. Lembramos que o Ritual da Penitência prevê até uma
celebração penitencial para as comunidades que não têm ministros ordenados.
O fato é que,
sempre nos tempos litúrgicos, somos convidados a reconciliar-nos conosco, com
as pessoas, com o mundo, com o cosmos, mas de uma maneira mais pedagógica a
Igreja nos propõe um itinerário, cujo caminho é recheado de elementos
simbólicos, bíblicos e espirituais. No próprio Missal Romano há duas Orações Eucarísticas
que trazem no seu bojo o tema da reconciliação (Oração Eucarística VII e VIII,
cf. Missal Cotidiano, Missal da assembleia cristã, pp. 568-573).
Nesse sentido,
analisemos então como o itinerário da Quaresma nos conduz à reconciliação, de
forma pedagógica, a fim de celebrarmos na alegria de irmãos e irmãs a Páscoa de
Jesus, aliada à nossa páscoa.
Ano Litúrgico como realidade que abarca todo o
mistério pascal
Em todo Ano
Litúrgico a Igreja celebra a realidade do mistério pascal, tendo como centro a
ressurreição do Senhor. Este mistério é celebrado tanto nos ritmos diário
(Ofício Divino), semanal (Eucaristia no Domingo), como também é lembrado de
forma solene e festiva uma vez por ano (Tríduo Pascal).
O Ano
Litúrgico se desenvolve em torno de dois grandes mistérios da vida de Jesus:
sua encarnação (Natal) e sua páscoa (Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão). Todos
os outros aspectos da vida de Jesus são um desenrolar desses dois, e são
contemplados também ao longo dos outros tempos litúrgicos (Tempo Comum, Festas
do Senhor, Santos e Santas de Deus, Festas dedicadas a Maria, Mãe do Senhor). Por
isso podemos dizer que no ciclo do Ano Litúrgico vivemos de forma simbólico-sacramental
as várias faces de um único mistério de Jesus. Para São Leão Magno, o que foi
vivenciado no tempo de Jesus pelos que o seguiam, passou-se agora para os
mistérios, que continuam operantes na Igreja mediante a celebração litúrgica,
ocasião em que a comunidade vivencia tal realidade através da ação ritual, isto
é, a comunidade experimenta hoje aquilo que se passou no tempo de Cristo.
Quaresma: origem, sentido e propostas
O Domingo, o
Dia do Senhor, era a referência celebrativa das comunidades primitivas. A
páscoa anual nasce somente na metade do séc. II, como um domingo maior. Em
torno disso se desenvolve o tríduo e os 50 dias da páscoa. O pentecostes é mais
primitivo que a quaresma, tendo sua origem na liturgia judaica e fundamentada
no AT.
A quaresma se
desenvolve somente no 4º século. Já no 3º século se faziam os batismos na
vigília pascal e ela nasce como um tempo mais intensivo de preparação dos
catecúmenos, assim como nasce com ela um motivo de preparação dos penitentes
que haviam relaxado no caminho de batizados, a fim de que voltassem à fonte do
batismo. É considerada então na liturgia como um tempo intenso de preparação
para a festa da páscoa do Senhor.
Na tradição
romana, a Quaresma é marcada pela celebração de dois sacramentos pascais por
excelência: Batismo e Eucaristia. Este conceito está presente na introdução do
rito da Renovação das Promessas do Batismo. A fundamentação bíblica nós
encontramos na Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 6: viver uma vida nova
/ sepultados com Cristo / evento batismal como participação na morte e
ressurreição de Cristo (tema da 7ª leitura na noite da Vigília Pascal); também
em Colossenses 3,1-4: buscar as coisas do alto e não da terra / vida nova com
Cristo, em Deus. São Paulo insiste que a vida é um dom de Deus, por isso
devemos ter uma postura de convertidos.
Portanto, no
Tempo da Quaresma, vivido como itinerário pedagógico na conduta da fé, consequentemente
de uma espiritualidade que desagua em fazer-nos convertidos, encontramos as
seguintes propostas:
- de
voltarmos a uma atenção geral ao mistério pascal (viver conforme vive quem é
ressuscitado);
- de
percorrermos um itinerário batismal (para os que ainda não estão inseridos na
comunidade);
- de correspondermos
a uma vida pautada na ética e na comunhão com os outros, isto é, colaborando no
plano do Reino, em paz com o mundo, com os outros e com o cosmos, em atitude de
respeito e cooperação (mudança de vida implica em vida comunitária, isto inclui
também a atitude ecológica, o respeito ao planeta);
- de
apoiarmos nossa caminhada num caráter todo cristológico e pascal (que permeia
todos os outros tempos litúrgicos);
De nossa
parte, é preciso também observarmos que este itinerário quaresmal:
- implica em
graça, por parte de Deus, e da nossa parte um esforço para tentarmos viver e
permanecer nessa graça.
- consiste em
vivermos um grande retiro, deixando que a Palavra de Deus nos questione,
trazendo luz naquilo que necessita de conversão.
- exige de
nossa parte uma renovação das promessas, num constante desejo de vivermos uma
vida nova e de permanecer nesta vida nova.
Da liturgia para a vida
Claro que
cada um vai confirmando e traçando seu itinerário próprio também de acordo com
seus propósitos, sobretudo delineados em forma de pequenos gestos e atitudes
exteriores, como abster-se de algum alimento ou dar mais atenção a determinado
aspecto de sua vida. Esse se torna então um caminho da graça, isto é, crescer
na intimidade com o Senhor, mover nosso afeto, reconfigurando-se aos afetos do
Senhor, como uma obra de transformação, que também se desdobra em atenção ao
outro, ao próximo.
Lembramos que
graça vem de gratuidade, é dom do próprio Deus, ela não se alcança, como costumamos
observar em faixas e cartazes perto de santos de devoção popular (“agradeço a
santo/santa... pela graça alcançada”). O
mecanismo da graça, se é que podemos falar assim, exige que nos moldemos àquilo
que Deus mesmo quer, só assim ela será perceptível. Jesus mesmo, quando criança, crescia em
graça, sabedoria e estatura diante de Deus, diz o evangelho de Lucas (Lc 2,40;
2,52).
Enquanto não
conseguimos nos amoldar neste estado de graça, a Igreja, com sua liturgia, nos
dá uma forcinha, uma espécie de empurrãozinho. Esta maneira de a Igreja
conduzir de forma pedagógica nossa existência para uma espiritualidade sadia,
nós encontramos na liturgia, com sua força simbólico-sacramental. Por isso, no
Tempo da Quaresma, a liturgia nos convida a:
- voltarmos o
olhar à necessidade de um resgate de uma espiritualidade que contenha um
dinamismo pascal. O simbolismo no número 40 durante o tempo quaresmal lembra um
tempo de preparação para um grande acontecimento salvífico: luta, expectativa,
esforço penitencial, em que no fim tudo encontra vida. Na Bíblia o número 40
está destacado em várias etapas do povo judeu, também em Jesus, quando vai para
o deserto ser tentado pelo demônio.
- compreendermos
que no simbolismo do número 40 também são os dias em que a mãe, logo após ter
dado a luz, passa pelo período chamado de “resguardo” ou “quarentena”, isto é, de
retomada ao estado natural de sua vida, já que, com a gravidez e o parto, ela
sofreu uma grande transformação.
- nos
empenharmos num grande desejo de transformação pessoal, tanto pelas atitudes
internas (espirituais) quanto externas (sociais).
Atitudes externas que têm a ver com o comunitário
Se as
atitudes internas nós podemos buscar na liturgia, como já dissemos, as atitudes
externas são também um desejo de a Igreja nos orientar para um despertar de
nosso corpo, a fim de que vivamos com mais intensidade aquilo que
experimentamos na alma, fazendo ressoar em gestos externos, mesmo que sejam
ainda pequenos, mas que ganham sentido importante quando são transignificados
na sua corporeidade. Essas atitudes, o jejum, a o oração e a caridade são como que
práticas de quem quer viver de acordo com os planos de Deus.
- A oração,
porque é um dos pilares da fé. Principalmente a oração em comunidade pode ser
colocada em relevo neste tempo.
- A caridade,
traduzida pela esmola, porque é uma recomendação, principalmente porque a fé
sem obras é morta. No ato da caridade todos podem também usufruir das alegrias
pascais que é desejo de Deus, portanto ninguém se prive do desejo de Deus e dos
dons pascais.
- O jejum, para
que o corpo, sacrificando-se, possa com mais intensidade esperar pela páscoa. É
apenas um sinal visível para despertar em nosso corpo a alegria de festejar a
páscoa, que é a festa dos dons em abundância. O jejum também pode ser visto
como uma ação de ir ao encontro dos outros, configurando o coração a Deus. Para
Pedro Crisólogo, Pai da Igreja do século V, o jejum deve ser regado pela
misericórdia, ou seja, misericórdia é consequência do jejum. Assim, para os
primeiros cristãos, tornar-se solidários aos outros era uma atitude de tornar
misericordioso ao outro, pois privar-se de algo para alimentar a outros é um
sacrifício agradável a Deus. Assim, os alimentos não consumidos no jejum destinavam-se
à esmola e à caridade a quem mais necessitava.
Quaresma, penitência e cinzas
É também no
período da Quaresma que ouvimos falar muito do termo ‘penitência’, ou ‘atitudes
penitenciais’. A penitência é nosso esforço permanente e concreto, numa espécie
de crescimento interno, o que se faz mediante a graça, que nos modela e nos
torna à estatura do próprio Cristo. Neste crescimento, que também podemos
chamar de ascese[1],
encontramos todo esforço para deixar paixões desenfreadas e mantermo-nos na
sobriedade e no equilíbrio. São recomendações da Igreja para este tempo,
sobretudo lembradas nas orações de Coleta dos domingos da Quaresma.
No tempo da
Quaresma, três elementos presentes dão o sentido específico do tempo de como se
deve viver o mistério pascal. Esses elementos compõem-se como sendo o ‘pano de
fundo’ do tempo quaresmal: o pecado público, as cinzas e o fogo.
Nas
comunidades primitivas, os primeiros cristãos, quando cometiam algo grave, eram
expulsos da comunidade. Parece-nos que os pecadores ou penitentes públicos se
colocavam entre estes, por isso, sua característica em penitenciar-se. Os
chamados penitentes públicos costumavam-se cobrir de cinzas do lixo. Era um
sinal visível do penitente expressando a ideia de que algo foi queimado, isto
é, somos transitórios aqui na nossa existência, por isso aquilo que não presta,
o lixo, deve ser queimado, ser deixado para trás. Na quinta-feira da última
semana da Quaresma, o bispo os acolhia, apresentavam-se à comunidade e
participavam da celebração da Ceia do Senhor. Não eram mais considerados
‘excomungados’ e retornavam ao sei da comunidade cristã. Nas Constituições
Apostólicas há relatos de orações sobre os penitentes durante a liturgia, e
assim que isso acontecia, eram convidados a retirar-se do templo.
Hoje, usamos
simbolicamente a queima das cinzas dos ramos usados na celebração do Domingo de
Ramos para a celebração na Quarta-feira de Cinzas do ano seguinte, o que
expressa essa ideia de passado, transitório. Pelo fogo, a purificação e a
destruição do galho (simbolizando nossa existência, galho que seca).
Os temas dos ciclos do Ano Litúrgico
No Ano
Litúrgico as etapas de preparação para a Páscoa do Senhor se apresentam
pedagogicamente nos cinco Domingos da Quaresma, representadas nos anos A, B e C:
- Nos Anos A
e B: o itinerário permite-nos compreender nossa participação no mistério de
Cristo.
- No Ano C: a
atitude de conversão do pecador e a misericórdia de Deus para com ele,
fazendo-o experimentar essa mesma misericórdia.
Essas
características convergem uma para as outras, como num ciclo. Seria
interessante fazermos um passeio pelas leituras dos Evangelhos dos ciclos do
ano A, B e C e descobrirmos os quatro elementos: 1) participação no mistério
pascal de Cristo, 2) conversão, 3) misericórdia de Deus e 4) experiência da
misericórdia de Deus.
A
participação no mistério pascal está bem presente e latente nos textos dos
prefácios deste tempo, bem como de outros tempos litúrgicos. Encontramos, por
exemplo, a afirmação de São Leão Magno: ‘em Adão todos morreram, em Cristo
todos reviverão’. São Basílio nos lembra da imitação de Cristo, por ele nós
fomos adotados pelo Pai.
Quaresma, iniciantes na fé e comunidade de
batizados
No ciclo do
Ano A aparece como pano de fundo o tema sacramental e batismal, pelo qual permite-nos
compreender a realidade da nossa vida de fé: iniciação à vida cristã. Os textos
dos exercícios batismais ou escrutínios, presentes no RICA (Ritual de Iniciação
Cristã de Adultos) deixam bem claro essa ligação com aquilo que o catecúmeno
deve viver com a temática desenvolvida nos evangelhos de João dos Domingos 3º
ao 5º (Revelação pessoal, Luz do mundo e Ressurreição e Vida): o Senhor faz
passar da morte para a vida. celebrando este ciclo, olhamos para aquilo que são
os compromissos do batizado e consequentemente renovamos (fazer memória).
Quando
falamos de Quaresma não podemos esquecer do primeiro aspecto de sua origem:
preparação dos catecúmenos para o recebimento dos sacramentos da iniciação
cristã, os chamados sacramentos iniciais de inserção na comunidade de fé. Estes
são exortados na 4ª semana da Quaresma, ocasião em que recitam o Credo e o Pai
Nosso. São também encorajados a permanecerem numa luta constante contra o mal
(orações de escrutínios e exorcismos), tendo como arma o próprio Jesus. O
caminho de conversão apresentado então a estes catecúmenos é simbolizado por um
tempo de reconciliação.
No ciclo do
Ano B três temáticas são desenvolvidas: Domingo 3: Templo vivo; Domingo 4:
Exaltação gloriosa – tipologia do deserto; Domingo 5: Grão de trigo – morrer
para gerar uma vida superabundante.
Já o ciclo do
Ano C as temáticas apresentam um itinerário mais ligado à questão penitencial:
Domingo 3: Figueira estéril; Domingo 4: Filho Pródigo; Domingo 5: A mulher
adúltera. O itinerário pedagógico-espiritual apresentado neste ciclo é o de que
todos devem buscar uma plena reconciliação com Deus e com o próximo.
Conclusão
De tudo isso
que já vimos o que é importante destacar é que na vida nós vamos perdendo a
identidade de batizados. Não somos batizados para simplesmente pertencermos a
uma comunidade de fé. Isso é pouco, mas a comunidade de fé é um sinal para
vivermos nosso batismo.
O que se quer
recuperar com esse caminho pedagógico-espiritual é a conversão e o
arrependimento, só daí então poderemos viver como batizados. É o que São Paulo
recomenda e pergunta à comunidade e a nós em sua Carta aos Romanos (7ª leitura
da Vigília Pascal – perda da identidade de batizados). Neste sentido, a solicitude
da Igreja em buscar os pecadores para seu seio se conforma com o período
quaresmal.
Tendo esses
elementos acima como temas do tempo da Quaresma, é então pertinente falar de
reconciliação. A respeito deste tema trataremos em outro texto.
[1] Ascese: é um termo teológico
o qual designa o esforço que todo cristão faz, aberto à graça de Deus, para
deixar que esta mesma graça atue em sua vida. Não é voluntarismo, sobretudo é a
partir de nossa limitação que nos abrimos à graça. É uma atitude de querer
vencer. É como o cego que encontra com Jesus e diz: ‘Senhor, eu quero ver’.
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