Ciência litúrgica, 50 anos depois da Sacrosanctum Concilium

Aula inaugural de Ione Buyst, no curso de Especialização e Capacitação em Liturgia, em parceria IFITEG e Rede Celebra-GO

por Eurivaldo Silva Ferreira

Aos alunos do Curso de Especialização e Capacitação em Liturgia, promovido pela parceria IFITEG e Rede Celebra, Ione Buyst, referência no Brasil no estudo e aplicação da Liturgia, tanto em nível pastoral quanto em nível acadêmico, proporcionou uma reflexão sobre o fazer ciência litúrgica após 50 anos da Sacrosanctum Concilium. Confira abaixo alguns trechos de sua reflexão.
Falamos muito de ciência litúrgica, mas o que significa isso? Que negócio é esse? Também falamos de ciência políticas, sociais, econômicas, médicas etc. Pois bem, ao fazermos Teologia, nós estudamos Liturgia, e esta é uma ciência, que, como tal, está no mesmo patamar das outras ciências, mas, infelizmente, dentre as disciplinas teológicas mais importantes, não está contemplada, e encontra-se meio que ‘jogada’ para a pastoral. Esta é opinião de Ione Buyst, referência no Brasil nos estudos da Liturgia.
Convidada pela Rede Celebra, Ione Buyst refletiu, em sua aula inaugural, na sede do IFITEG, Instituto de Filosofia e Teologia do Estado de Goiás, que dá a chancela do curso de Capacitação e Especialização em Liturgia, a questão da Liturgia enquanto ciência.
Num conceito originário da Alemanha, a ciência litúrgica visa uma tentativa de se chegar num estudo sistemático, planejado e crítico da liturgia, visando também sua aplicação à pastoral. Até no século passado, quando se falava de se estudar liturgia, eram as rubricas que importava, isto é, via-se o estudo da liturgia enquanto jurisdição. Hoje, com a ciência litúrgica, esse conceito mudou. Agora exige-se aperfeiçoamento do saber, por isso a natureza científica da liturgia, por isso cita Andrea Grillo, liturgista italiano, que considera o início da ciência litúrgica comparando-a à forma litúrgica, ligada com a forma ritual, prescrita, ou seja, aquela que busca o sentido antropológico do rito. No início do século passado se começou a prestar atenção nisso, à forma sacramental da liturgia. Ione cita isso em seu livro “O segredo dos ritos” (Paulinas, 2011) às páginas 42 e ss.
Para Ione, uma palavra que ainda hoje é usada em liturgia é ‘cerimonial’, esta contradiz o sentido litúrgico da ação ritual. A palavra cerimonial está mais sendo aplicada à natureza jurídica do rito do que ao sentido teológico que ele traduz e supõe. Por isso, estudar a liturgia com um sentido científico é entendê-la como ciência teológica. Daí entender que Liturgia não é uma cerimônia, mas trata-se de uma expressão ritual, uma realidade teologal. Assim, a liturgia se expressa, se interliga com as outras ciências, e com ela deve dialogar, como é o caso da arquitetura, da música, da ecologia, da antropologia etc. Ao considerarmos sempre a liturgia na sua concepção teologal, temos claro que a teologia é essencial.
Ione explicita aos alunos as várias vertentes de como se deve estudar a ciência litúrgica. Um primeiro propósito é a mistagogia, que não é ciência, mas aquilo que se estuda como mística, segundo os Padres da Igreja dos primeiros séculos do cristianismo. Ione indica para leitura o livro Missarium Solemnia, que traz um panorama do que é analisar a origem dos ritos através de uma visão científica.
Partindo-se dos movimentos pré-existentes ao Concílio Vaticano II, bíblico, litúrgico e ecumênico, temos a segunda vertente de estudo da liturgia enquanto ciência, a dimensão histórica da liturgia.
Para Ione, analisar a liturgia ligada à sua sacramentalidade é um problema real que encontramos nos grandes institutos teológicos, isto é, infelizmente a liturgia está desligada dos sacramentos. De fato, a liturgia toda é sacramental.

É também importante estudarmos a liturgia em sua dimensão sociológica.
Então, o que é que o Concílio Vaticano II trouxe de novo? Qual a novidade implícita no Concílio? O que nos interessa ao fazermos ciência litúrgica?

Ione elenca alguns elementos:

1) Participação ativa de todo o povo de Deus, que é povo sacerdotal. Foi esse o conceito trazido pela Constituição Lumen Gentium. Já não se trata mais de dizer que Igreja é um grupo guiado por uma cúpula, mas agora é povo de Deus, e que reclama para si uma participação mais intensa no mistério celebrado. Isso supõe uma necessidade de inculturação, por exemplo, a começar pela língua, o que não significa voltar ao latim.


2) Liturgia como realidade teologal. Trata-se de dizer que liturgia não é cerimônia, mas ação de Deus, pelo Filho, no Espírito. Logo, liturgia é ação cultual a Deus. a liturgia é uma expressão ritual, respondendo àquela ação libertadora de Deus. É então ação memorial, em que se recorda na liturgia como momento histórico da salvação ou ainda da economia da salvação.

3) Sacramentalidade da Liturgia. A Verbum Domini, de Bento XVI, recorda que a Palavra é também sacramento, que age performaticamente, isto é, faz acontecer aquilo que diz. A Palavra gera a fé. Sem a fé é impossível celebrar. Logo, nossas liturgias precisam deixar de ser rotineiras para abrir-se para o âmbito da sacramentalidade, isto é, fazer acontecer aquilo que dizem. O fato é que muitos dos que se fazem presentes nas ações litúrgicas não sabem seus conceitos ou não foram preparados para tal. Santo Agostinho diz que sacramento é palavra visível. Se na Bíblia se narram os eventos salvíficos, na liturgia se fazem com gestos. Logo, no entender de Santo Agostinho, na liturgia não se lida com um texto mas com uma palavra visível. Andrea Grillo insiste em vários dos seus trabalhos, citando, por exemplo, a SC 48, cuja tradução fiel ao texto original fala de ‘fazer participar do mistério pelos ritos e pelas preces, através dos sinais sensíveis’. Mas, para que a participação seja ativa, frutuosa e conscientes, tudo isso supõe formação litúrgica, é o que dizem os números 14 a 20 da SC. Formação dos padres, dos formadores e de todo o povo de Deus.

4) Catecumenato. Não se trata aí de dar catequese, no sentido de repassar conteúdos, mas de fazer com que a catequese , que indica o que é ser cristão, deixe-se conduzir por uma experiência do mistério. Logo, entende-se a catequese como processo da iniciação cristã.

5) Liturgia como fonte de vida espiritual. É o que afirmam os números de 11 a 13 da SC, para que a liturgia seja a fonte da espiritualidade. Aprendemos que espiritualidade é outra coisa (rezas, terços, adoração, devoção etc). Mas, o que a SC afirma é que não pode haver espiritualidade sem que se passe pela liturgia. A maioria dos retiros espirituais segue uma linha desligada da liturgia. Pensa-se em temas espirituais que vão contrariamente à espiritualidade genuína oriunda da liturgia.

Ione continua afirmando que a SC é documento do CV II, e que o conceito do magistério unitário do CV II vai além. É o caso da afirmação da Gaudium et Spes, constituição pastoral que fala da Igreja no mundo de hoje. Para este documento, se a Igreja tem uma missão no mundo, sua razão teológica é afirmar que Deus atua na história, logo o mistério de Deus está acontecendo na história humana e também no cosmos. Deus está atuando aí. É preciso que na liturgia sejamos capazes de expressar o Deus acontecendo na história. Como fazer isso?

O documento de Medellin fala disso, também fazendo ligação com a Populorum progressio, no sentido de ver na liturgia um acontecimento na história do continente latino-americano. Medellin fez uma leitura crítica, mas não só crítica, mas uma interpretação criativa do CV II, afirmando no número 9, ratificando a Gaudium et Spes 43, que a liturgia coroa e comporta um compromisso com a realidade humana.

Tudo isso não é uma coisa simples, apenas, mas se trata de uma obrigatoriedade. Assim como Israel, o antigo povo sentia a presença salvífica de Deus, conseguindo atravessar o Mar Vermelho, assim também o povo de Deus não o pode deixar de sentir sua atuação salvífica aqui no contexto latino-americano. A passagem de condições menos humanas para condições mais humanas é o mote de interpretação para esse fato bíblico.

Por isso entendemos que cristianismo é estar presente na história, atentos ao Deus que salva. É isso que deve ser celebrado na liturgia. Nesse sentido, nós avançamos pouco, e a pergunta nos faz incômoda: aonde fazer acontecer na liturgia esses fatos? O que Medellin vem afirmar é que não existe Reino de Deus sem os pobres. Isso não é uma moda, mas foi João XXIII quem resgatou a questão dos pobres no CV II. Como levar em conta isso?
Chegando ao final de sua explanação, Ione ainda deu dicas de como fazer ciência litúrgica no Brasil, por isso sugeriu passos importantes, vejamos:

1) O que vou estudar?
2) Qual é o objetivo?
3) Para quem? Quem será(ão) o(s) beneficiário(s)?
4) Partir da realidade. Que método usar ou privilegiar? A América Latina privilegiou o método Ver-Julgar-Agir, mas também há a Observação participante, o método mistagógico.


Para quem pôde ouvir Ione nessa aula inaugural, percebeu que há um caminho longo a percorrer, e que é necessário retomar a liturgia enquanto mistério pascal, uma vez que a SC transcende a noção de sacramento, afirmando a vida como sacramento. Ora, se eu entendo a vida como sacramento, então eu consigo entender a liturgia. É o mistério pascal acontecendo, tal e qual, nos gestos de solidariedade ao mais sofrido. Assim, a liturgia nos orienta a estarmos atentos: é lá que está acontecendo o Reino e o anti-reino.

É necessário que a espiritualidade que deriva da liturgia nos traga essa perspectiva, de escutá-la, fazendo os mesmos gestos de Jesus, ao mesmo tempo nos levando a refletir sobre esses gestos, bebendo do mesmo espírito que Jesus bebeu. Só assim entenderemos que esse espírito perpassa em nossos corpos, e nós incorporaremos isso: vou fazer assim, é essa a atitude de uma genuína espiritualidade litúrgica indispensável. Ela nos ensinará a fazer ciência litúrgica.

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