A celebração do Corpo e Sangue de Cristo


                                                    Eurivaldo S. Ferreira


Aspectos históricos da festa de Corpus Christi

Popularmente conhecida como Festa de Corpus Christi, esta festa é produto da devoção eucarística medieval ocidental. Ela surge para afirmar a presença real de Jesus na Eucaristia, a partir da contestação de um teólogo do século XI que negava a transubstanciação do pão e do vinho. Importante lembrar que os conceitos doutrinais da Igreja católica presentes em seu depósito da fé foram se afirmando a partir de contestações como esta, o que culminou com a definição sobre a transubstanciação, no 4º Concílio de Latrão (1215), formalmente definida que “por divino poder, o pão e o vinho são transubstanciados no Corpo e Sangue de Cristo”. Por conta disso, o papa Urbano IV a partir de 1264, estendeu essa festa a toda a Igreja.


Desde as comunidades primitivas, por meio da fé, acreditamos que a Eucaristia é o Corpo e Sangue, Alma e Divindade de Jesus sob as aparências de pão e vinho. No evangelho de João Jesus declara abertamente que ele tinha vindo para nos dar sua carne e seu sangue como verdadeira comida e verdadeira bebida (cf. Jo 6,26-58). Essa linguagem foi difícil de ser aceita por muitos do tempo de Jesus, afirmando que era uma linguagem dura e difícil de aceitá-la (cf. Jo 6,60), por isso alguns discípulos deixaram de seguir Jesus, e Jesus deixou-os ir.


A partir do século 20, com a reforma do Concílio Vaticano II, essa celebração ganhou novos aspectos, sendo acrescida de textos bíblicos mais ricos e de orações próprias (oração da coleta e prefácios), cuja finalidade é a de exprimir uma visão do mistério eucarístico que leve em conta todos os seus aspectos, e não se fixe apenas na presença real.


Também não devemos esquecer que a antiga e mais genuína espiritualidade eucarística, antes das polêmicas contra os a negação do século XI, via na Páscoa o dia eucarístico por excelência.


O aproveitamento espiritual desta festa que tem como centro o mistério pascal de Cristo não pode ser reduzido apenas à presença real de Cristo no pão e no vinho. Acerca disso há uma orientação da Congregação dos Ritos, na instrução Eucharisticum mysterium que diz que a presença real-substancial de Cristo na eucaristia, lembrada por esta solenidade, deve ser vista enquanto nasce da e na celebração da missa, prolongando-se também depois, mas sem nunca perder a sua relação essencial com o sacrifício.


A relação entre a missa e o culto eucarístico fora dela


A procissão pelas ruas realizada nesse dia remonta a um tempo antes do século XIII. Essa tem o sentido de mostrar ao mundo o caráter vivo dessa presença que foi vivenciada na missa. Assim, expressa-se também de forma solene, o culto da eucaristia fora da missa. De fato, mesmo que este sacramento tenha sido instituído como nosso alimento, não é por isso que diminui o dever se adorá-lo. Por isso a adoração que se segue é um ato pessoal de encontro com o Senhor, e que sua prática redunda em amadurecer depois também a missão social no mundo e no acolhimento do outro, tornando-se um ato comunitário, já que este rito não se encerra em si mesmo. É igualmente indispensável valorizar a profunda reverência do povo diante das sagradas espécies, mas jamais fazer disso motivo de volta ao triunfalismo que nada tem a ver com a memória essencial que celebramos na eucaristia.


O Diretório de Piedade Popular no nº 161 nos ensina que o ponto supremo da referência da piedade eucarística é a Páscoa do Senhor; portanto, a Páscoa, segundo a visão dos Santos Padres, é a festa da Eucaristia e, por outro lado, a Eucaristia é antes de tudo celebração da Páscoa, isto é, da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Ou seja, a devoção decorre da celebração eucarística e para ela encaminha o fiel. Por isso, para que nossa compreensão seja melhor apurada, deveríamos investir e muito na melhoria das nossas celebrações eucarísticas, sob o ponto de vista dos ritos, da proclamação da Palavra, do canto e da música, da sua natureza mistagógica (mistagogia = entrar no mistério), a fim de que os fiéis possam ser esclarecidos de que a adoração é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, à qual, em si mesma, é o maior ato de adoração da Igreja.


Então, se nossas celebrações eucarísticas não visualizarem e vislumbrarem esse prolongamento, no sentido mais completo, na estrita relação profunda dos seus ritos, do seu sentido e da sua espiritualidade, elementos que a mistagogia nos proporciona, de nada adiantará contemplarmos o prolongamento desta ação no culto de adoração eucarística fora da missa. Sem dizer que nossas missas ainda são dotadas de carências, e muitas vezes revestidas de um caráter subjetivista e intimista.


O culto de adoração e seu aspecto social e espiritual


O papa Paulo VI na Encíclica Mysterium fidei (sobre o culto da Sagrada Eucaristia, nº 71), afirma que o significado desse rito é o de ultrapassar as barreiras criadas pelo intimismo e reconhecer que o culto eucarístico promove muito mais nas almas o amor 'social', que nos leva a antepor o bem comum ao bem particular, a fazer nossa a causa da comunidade, da paróquia e da Igreja universal, e a dilatarmos a caridade até abraçarmos o mundo inteiro; pois, sabemos que em toda parte há membros de Cristo.


O papa Bento XVI, numa de suas homilias, afirma que para uma autêntica vivência da fé, a Eucaristia como presença real abre o caminho para entendermos todas as dimensões desse mistério e o caráter sagrado de toda a nossa vida.


Na encíclica Sacramentum caritatis, Bento XVI, ratificando o Ritual Romano, ensina que "o ato de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria celebração litúrgica". Eis aí uma bela justificativa para a ação desse prolongamento, pois a presença permanente do Senhor no sacramento decorre da celebração da missa e sua adoração deve conduzir à comunhão sacramental, que significa uma atitude de comunhão integral com aquilo que o sacramento proporciona (comunhão com os outros, com o mundo, com o cosmos).


A piedade que leva os fiéis à adoração da Santíssima Eucaristia move-os também a participar radicalmente do mistério pascal e corresponder agradecidos ao dom daquele que, por sua humanidade, infunde sem cessar a vida divina nos membros do seu Corpo, provocando entre os membros uma transformação substancial.


O papa também recomenda que “para isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a importância deste ato de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a própria celebração litúrgica”. Ao dizer: “mais profundamente e com maior fruto”, Bento XVI usa as mesmas palavras da Sacrosanctum concilium nº 11, que se entende como ir à liturgia com disposição de reta intenção... acompanhar as palavras com a mente, cooperar com a graça... Por isso não basta apenas observar a norma, é preciso participar ritualmente com conhecimento de causa, ativa e frutuosamente.


Transubstanciação e a vida do mundo


Na missa, pão e vinho são transubstanciados em corpo e sangue de Cristo. Em que consiste para nós este ato de fé? Como podemos nos transubstanciar no mundo?


Numa homilia aos jovens de Colônia, Alemanha, Bento XVI diz que através da celebração da eucaristia entramos na ‘hora de Jesus’, pois com os gestos e ritos nós fazemos memória dos atos e da vida de Jesus. Com as palavras: “Meu corpo entregue..., meu sangue derramado...”, Jesus entra nessa dinâmica, é sua páscoa para o mundo. Nós também entramos com ele nesse dinamismo do amor que vence a morte, o mal supera a dor, a vingança dá lugar à reconciliação, a partilha substitua o egoísmo etc. Trata-se de afirmar que, de nossa parte devemos nos ‘transformar substancialmente’, a fim de que, a partir de nós o mundo seja renovado, transformado, que passe da violência para o amor, do individualismo para a doação. Foi assim que Jesus fez e ensinou a fazer, a fim de que todos fossem livres.


Na missa, a conseqüência da entrega de Jesus e da transubstanciação do pão e do vinho têm significado especial na oração eucarística, em que se invoca o Espírito sobre o pão e o vinho, cuja finalidade desemboca num processo de transformações que visam a transformação do mundo, de toda a realidade humana e cósmica, até que Deus seja tudo em todos, conforme a expressão de São Paulo em 1Cor 15,28.

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