Quem “fabricou” os líderes religiosos popstars?
Eurivaldo S. Ferreira
Parece até que o
assunto se encontra um tanto quanto esgotado, e muito já se falou sobre isso.
Ocorre que, com os recentes episódios em que dois grandes líderes religiosos
cristãos são envolvidos em não cumprir os mandamentos da Lei de Deus, as
questões sempre retornam. O assunto é então a atividade artística e midiática
desses líderes religiosos que encontraram na boa fé do povo um arcabouço para o
exercício de suas manifestações artístico-religiosas.
Em primeiro lugar são
líderes religiosos artistas porque conseguem arrebanhar multidões ao seu redor
em seus mega espetáculos ou shows, haja vista o nascimento de um desses já no
final da década de 1990 numa conhecida diocese da cidade de São Paulo.
Em segundo lugar não se
trata de indivíduos “fabricados” ou “construídos” pelo povo simples, isto é,
seus seguidores, as pessoas de fé simples. Há de se entender o mecanismo de
construção desses artistas que atendem perfeitamente a uma demanda dos mercados
editoriais de fonogramas, livros, TVs, objetos devocionais etc.
Como não fica claro o
momento em que nasce uma dessas estrelas é impossível datarmos o início do
processo, isto é, o dia do chamado “batismo” da estrela religiosa midiática.
Contudo, como já afirmamos, trata-se de um processo em construção para se chegar
a este fim. O processo se camufla na sua formação, nos estudos e até mesmo em
seu ministério.
Mas, perguntamos então:
quem “fabrica” os líderes religiosos popstars? Como é o processo de sua
construção? Como chegam à fama muito rapidamente? O que os faz manter-se no
patamar da fama e do sucesso servindo ao deus-mercado? Minha investigação
detém-se na imagem do padre popstar, por isso não vou aprofundar a figura do
artista líder religioso nas outras igrejas cristãs.
Dom Silvio Dutra, bispo
da Diocese de Vacaria, RS, disse em homilia gravada que “vivemos numa sociedade
da estética em que há um zelo exagerado pela aparência”. Tudo isso está
presente nas formas que consumimos as coisas, desde a necessidade para o corpo
como para o bem-estar. Tudo passa pela questão da estética. Dom Silvio ainda
afirma que “normalmente esse exagerado zelo pela aparência pode sustentar algo
hipócrita, em que o sujeito mostra o não-ser”. Há um risco nisso, pois “mãos
postas ou olhos revirados em orações caem por terra diante de uma fraqueza
humana”, continua o bispo. “Insistir nesse tipo de modelo não é próprio nem
para padres líderes religiosos nem para freiras ou leigos”, adverte. Para Dom
Silvio, “o lugar dos padres não é o palco, mas sim se inserindo na
evangelização”. Segundo o bispo, “vivemos uma pandemia do farisaísmo em que lideranças
religiosas guardam sob si muitas podridões que, a qualquer momento podem ser
reveladas”.
Bem, a fala desse sábio
bispo ilustra bem a finalidade desse artigo, e vem em boa hora. Sabemos que há
muitos líderes religiosos que não compactuam com o estrelismo nem com os palcos
midiáticos. Esses servem ao seu povo atuando discretamente em suas comunidades
ou paróquias, quer sejam urbanas, quer sejam rurais. Ainda há aqueles que devotam
parte de sua vida a uma causa social. É louvável admirarmos sua resignação na entrega
de feliz vocação que optaram em servir a Igreja e ao Reino.
Não tão raro costumamos
ver nos programas populares de TVs abertas ou fechadas os chamados padres
midiáticos expondo suas falas sobre algum tema atual ou mesmo sobre suas vidas
particulares. Geralmente esses programas nunca exploram sua relação para com a
evangelização ou o serviço ministerial pelo qual foram ordenados.
De uns tempos para cá
muitos desses presbíteros começaram a aparecer travestidos de personagens como
cowboys, roqueiros, sambistas, sertanejos. Muitos ainda aparecem com vestes
litúrgicas que remontam a tempos medievais como rendas, barretes,
casulas-violão, são vestes que mais parecem ser tiradas de museus sacros.
Outros ainda fazem questão de aparecer com suas batinas pretas a fim de se
afirmarem em sua identidade clerical.
Cremos que a
criação dessas figuras caricatas por parte desses presbíteros midiáticos não foi
escolha do povo, isto é, o povo simples não foi construindo isso. Foi uma
fabricação acontecendo aos poucos pelo sujeito que recebeu o sacramento da Ordem
pelas mãos do bispo ordenante, e tudo sob a tutela do formador, do provincial e
do bispo. Além do que o sujeito criador não esteve o tempo inteiro fechado num
camarim produzindo sua fantasia e, de uma hora para outra, resolve sair dele
para mostrar sua montagem ou maquiagem. Tudo isso foi sendo construído aos
poucos, e muitos de seus colegas e superiores foram presenciando isso.
Dar ao povo aquilo que
ele não é capaz de fazê-lo é culpá-lo injustamente. Portanto, líderes
religiosos popstars são criações nascidas no interior das igrejas ou dos
templos, e sob a tutela da própria instituição. Podem me contrariar, se assim o
desejarem, mas a Igreja tem ciência disso. Por que esconder ou ocultar sua
participação nesse processo?
No entanto, a própria
instituição “se aproveita” desse tipo de caricatura. Quem nunca se sentiu
atraído por um show de um desses padres cantores numa quermesse paroquial? Sabe-se
até que o show de quaisquer um deles é muito atrativo, mas também muito
oneroso. Um cachê de um desses padres artistas chega a custar cerca de 120 mil
reais.
Não se trata de
endeusar a figura do líder religioso, como já afirmaram com as seguintes
expressões: “O povo gosta dele”, “Ele é muito carismático, por isso atrai
multidões para si”, “Ele conseguiu trazer o povo católico de volta para a
igreja” etc., mas de colocá-lo ao serviço de seu próprio ministério, como já
afirmou Dom Silvio, em sua homilia. Devemos questionar o modo de como a Igreja
Católica faz seu serviço de evangelização se apropriando desses mecanismos
midiáticos, e como se apropria. O que está em jogo é a sobrevivência da
instituição, que não em poucas vezes arrisca-se por uma conjugação entre
manutenção e fé, entre sobrevivência e solidificação no concorrido mercado
religioso. O risco não é conjugar uma coisa e outra, mas o de fazer do risco
uma carreira eclesiástica.
É possível então para a
Igreja Católica sobreviver sem essas figuras carismáticas que conseguem atrair
multidões? Elas se tornam paradigmas para a sustentação de um modelo clerical
que não consegue buscar sob outras formas novas bandeiras para sua
sustentabilidade. É um desafio e tanto, e a partir daí a Igreja então copia o
modelo do mercado. É aí que mora o perigo. A pergunta então é como se mantém as
instituições se não estiverem sob a tutela do comércio da fé? Nesse sentido, Estado,
mercado e igrejas disputam num mesmo palco sua confirmação social, o que
podemos chamar de manutenção de seu status. Repito, o desafio é conjugar
essa manutenção e a fé.
Mas a fé exige mudanças e comportamentos
comprometedores com a realidade.
Como promover isso?
Vamos citar apenas um exemplo, mas há outros que o(a) leitor(a) pode
compreender e refletir. Um grande espaço que temos são as celebrações
litúrgicas. Elas serão muito mais espaço de manutenção desta fé quanto mais
forem reverenciadas no seu mistério salvífico: o Filho que se oferta ao Pai,
por meio do Espírito. Assim, Medard Khel afirma que
A
melhor forma de realizar (essas mudanças e comportamentos) é pela atmosfera
libertadora e gratificante de nossas celebrações litúrgicas, por uma variada
mistagogia para a oração e meditação pessoais, por símbolos, palavras da
pregação próximas à vida, pela ligação dos sacramentos da iniciação a real
inserção numa comunidade concreta (como, por exemplo, grupos de famílias e
padrinhos para os recém-batizados, de crianças de primeira comunhão, de
crismandos e suas famílias, de outros grupos de crianças e jovens que oferecem
educação religiosa de acordo com a idade etc.), sobretudo por relações pessoais
dos fiéis entre si (também dos detentores de ministérios oficiais), pelas quais
se transmite a fé de maneira mais convincente[1].
O autor citado
investiga essas mudanças no âmbito do comportamento ligado à realidade social,
como, por exemplo, na questão da fé e da atuação social de transferência de
serviços de nossas comunidades ao afirmar que “uma fraqueza fundamental de
nossas atuais comunidades talvez possa estar no fato de transferirem quase
inteiramente a diaconia para com os pobres à competência especializada da ‘Cáritas’
e outras organizações eclesiais. Assim, desaparecem os pobres de nosso campo
visual e não nos sentimos diretamente solidários (e responsáveis para) com eles”[2].
Desta forma, quando o
indivíduo representante daquela instituição perde de vista a pobreza, a riqueza
desmedida e advinda através da acumulação indevida sob a forma de arrecadação
por meio dos pobres, ele coloca em risco a própria instituição. Também coloca
em risco quando este indivíduo assume em si uma identidade não própria da instituição
que representa, apropriando-se de elementos externos a ela. Estaria aí o
problema da midiatização da fé? É necessário esse recurso para o serviço da
evangelização que as igrejas se propõem a cumprir?
Voltemos então à pergunta título de
nosso artigo: Quem “fabricou” os líderes religiosos popstars? Minha intenção
não é aqui promover um enrijecimento ou fechamento às culturas modernas e
impedir que líderes religiosos não participem delas. Estou a falar do modo caricato
de alguns líderes religiosos que se destacam no ambiente artístico e que tem
avançado nos últimos tempos. É possível retomarmos a ideia de que os novos
ambientes modernos e tecnológicos ajudem na evangelização. Não podemos negar
isso. Mas muitas vezes essa desfiguração do líder religioso transcende sua
própria aparência produzindo gostos e tendências por vezes duvidosos e discutíveis,
e se apresentam como que de goela abaixo pela população de fé simples. Será
essa a única forma de se entender a sutil conjugação das igrejas e os
mecanismos modernos de evangelização?
Alerta o Estudos da CNBB nº 111:
“Orientações pastorais para as mídias católica (imprensa, rádio, TV e novas
mídias)” que “bispos, padres e religiosos são pessoas públicas e que, ao se
entregarem ao mercado da fé não o façam pela via de uma proposta estranha ao
caminho cristão”, e aconselha que “estes não sejam “promotores de venda”
midiática, especialmente quando se trata de produtos comerciais que não têm
como fim a evangelização” (nº 5, pp. 15-16). Está aí uma questão a ser
observada pelos bispos, superiores e responsáveis por instituições que
transitam no mundo das mídias.
De fato, a figura do líder religioso,
seja ele bispo, padre ou pastor(a) não pode contrariar o senso eclesial comum.
Levar a fé por meio de transmissões midiáticas é assunto delicado. Fazer disso
um trampolim para outros fins que não seja a evangelização ou ainda maquiar a
proposta do Reino, é um desastre para a vida eclesial. De fato, quando se
misturam demasiados gostos de subjetivismo, devoção e emoção, pode ser que o
caricaturismo do líder religioso tenha enorme proporção de avanço. O risco que
se corre é não se poder voltar atrás.
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