Jejum e oração durante o tempo quaresmal
Intuição pedagógica-espiritual acentuada nas atitudes do corpo e do espírito
A mulher pega em adultério (HI-QI Gallery, adquirida da internet) |
Eurivaldo
Silva Ferreira[1]
A Igreja nunca deixou de recomendar aos
fiéis algumas práticas específicas dos tempos litúrgicos, pois, “segundo as
instituições tradicionais, ela [a Igreja] aperfeiçoa a formação dos fiéis por
piedosos exercícios da alma e do corpo, pela instrução, pela oração e pelas
obras de penitência e misericórdia” (Sacrosanctum Concilium, 105). A reforma
conciliar considerou que o próprio “Ano Litúrgico, principalmente pelo mistério
pascal, alimenta devidamente a piedade dos fiéis” (SC, 107), conforme estes vão
participando das celebrações ao longo de seu percurso.
Dentre essas ‘práticas específicas’
e ‘obras de penitência e misericórdia’ citadas pelo Concílio Vaticano II,
queremos dar destaque àquelas que aparecem no tempo da Quaresma, entendidas
como: o jejum, a oração e a caridade. Encontramos na riqueza da Tradição da
Igreja uma diversidade de recomendação quanto a essas práticas quaresmais,
sobretudo vividas em continuidade com a prática das comunidades de Israel. Diz
o nº 14 da PCFP:
A virtude e a prática da penitência permanecem
partes necessárias da preparação pascal: da conversão do coração deve brotar a
prática externa da penitência, quer para os cristãos individualmente quer para
a comunidade inteira; prática penitencial que, embora adaptada às
circunstâncias e condições próprias do nosso tempo, deve, porém, estar sempre
impregnada do espírito evangélico de penitência e orientada para o bem dos
irmãos.
A recomendação do jejum, tomada da
tradição bíblica, é uma atitude de despojamento que agrada a Deus, e que ao
mesmo tempo nos aproxima dele. No século II, Barnabé, um doutor da escola de
Alexandria, recomendava o jejum tal qual estava prescrito em Is 58,4-5. 6.10[2]. Na Didascália dos
Apóstolos, há uma recomendação para que se faça jejum durante a Páscoa tal qual
aquele recomendado ao povo judeu[3]. Orígenes, no século III,
falava de uma outra forma de jejuar, como a que não sendo pela abstinência de
alimentos[4]:
Queres que te mostre ainda o jejum que deves
praticar? Jejua de todo o pecado, não tomes nenhum alimento de malícia, não
aceites nenhum prato de volúpia, não te esquentes com nenhum vinho de luxúria.
Faz jejum de ações más, abstém-te de palavras maldosas, guarda-te de
pensamentos perversos... Um jejum deste gênero agrada a Deus...
Santo Agostinho diz não ter
encontrado nos escritos evangélicos e apostólicos nenhum preceito claro que
mande guardar o jejum em dias determinados, por isso vai se aconselhar com Santo
Ambrósio, que colocou o jejum como um dado cultural, ou seja, dependendo do
lugar que estivesse, jejuava[5].
Para Pedro Crisólogo, Pai da Igreja
do século V, o jejum deve ser regado pela misericórdia, que é consequência do mesmo
jejum. Assim, para os primeiros cristãos, tornar-se solidários aos outros era
uma atitude de se tornar misericordioso ao outro, pois privar-se de algo para
alimentar a outros é um sacrifício agradável a Deus (cf. Is, 58). Assim, os
alimentos não consumidos no jejum destinavam-se à esmola e à caridade a quem
mais necessitava.
Sobre isso, São Leão Magno, papa e doutor da Igreja, fala
de um agente externo que quer nos impelir a pecar, fazendo-nos esquecer da
fonte do perdão: as tentações, dentre elas aquelas de já nos considerarmos
perfeitos. O próprio mistério pascal, celebrado e vivido com mais intensidade
por ocasião do tríduo pascal é a meta. Por isso também recomenda que ‘entremos
na Quaresma com uma fidelidade maior ao serviço do Senhor’, nesse sentido, o
jejum e a caridade são sinais externos para se vencer o mal, que cada vez mais
quer se sobressair em nós[6].
O modo de entendermos o jejum neste
itinerário pascal nos remete a uma atitude espiritual: torna-se um caminho da
graça, isto é, crescemos na intimidade com o Senhor, ao mesmo tempo em que
movemos nossos afetos, reconfigurando-os aos afetos do Senhor, como uma obra de
transformação, que também se desdobra em atenção ao outro, ao próximo. O
alimento que se deixa de comer, a atitude que se deixa de tomar, deve ser
tornado em benefício do próximo.
O espírito deste tempo nos devota a
nos empenharmos num grande desejo de transformação pessoal, tanto pelas
atitudes internas e individuais (espirituais) quanto externas e sociais (cf.
SC, 110). Esses gestos ganham sentido quando são significados em nosso corpo.
O jejum se coloca então como um
gesto simbólico, revestido de uma concepção externa, mas que atinge seu
objetivo na interioridade: o corpo, sacrificando-se, possa com mais intensidade
esperar pela páscoa. É apenas um sinal visível para despertar em nosso corpo a
alegria de festejar a páscoa, que é a festa dos dons em abundância. O jejum
também pode ser visto como uma ação de ir ao encontro dos outros, configurando
o coração a Deus. Há tantos necessitados de uma palavra de apoio e de conforto
espiritual e social.
Recomendados também como exercícios
da alma e do corpo são a oração e a caridade (cf. SC, 105). A oração, porque é
um dos pilares da fé. Principalmente a oração em comunidade pode ser colocada
em relevo neste tempo. A caridade, traduzida pela esmola, nos recorda que
principalmente que a fé sem obras é morta. No ato da caridade todos podem
também usufruir das alegrias pascais que é desejo de Deus, portanto ninguém se
prive do desejo de Deus e dos dons pascais. Assim, a penitência, como esforço
permanente e concreto, numa espécie de crescimento interno[7], conforme a atitude dos
primeiros cristãos, é re-significada nas atitudes do corpo, que ouve a Palavra,
que ora e que faz um esforço constante de abster de algo, em contínua
preparação para o mundo novo que há de vir.
Estes gestos e sinais vêm carregados
de uma finalidade à qual nos faz conduzir o olhar para o dinamismo pascal e sua
espiritualidade, os quais se faz mediante a graça, que nos modela e nos torna à
estatura do próprio Cristo. Neste crescimento, que também podemos chamar de
ascese[8], encontramos todo esforço
para deixar paixões desenfreadas e mantermo-nos na sobriedade e no equilíbrio.
São recomendações da Igreja para este tempo, sobretudo lembradas nas orações de
Coleta dos domingos da Quaresma.
Os espaços litúrgicos também são caracterizados
deste recolhimento quaresmal, de modo que a visualização destes possa inspirar
os fiéis no caminho da simplicidade e do despojamento. Por isso, a recomendação
de se abdicar das flores nos presbitérios, do instrumento musical apenas como
suporte apoiador dos cantores, da ausência do Glória e do Aleluia, que são
elementos característicos de solenidades e festas. Além disso, o criterioso
repertório de cantos rituais do tempo quaresmal seja escolhido tendo em vista
sua proximidade aos textos litúrgicos (cf. PCFP, 17-19). Percebe-se o intuito
pedagógico desta recomendação: a Igreja, templo e espaço da profissão de fé,
que caminha austera no tempo quaresmal, também é da mesma forma convidada a
fazer seu retiro espiritual.
[1] Mestre em Teologia pela PUC/SP, com
concentração em Liturgia. Especialista em Liturgia, pelo IFITEG-GO. Formado em
Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da
PUC/SP. Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica e do Corpo Eclesial de
Compositores da CNBB. É Assessor da Música Litúrgica da Comissão Episcopal para
a Liturgia da CNBB.
[2] Antologia
litúrgica, p. 118.
[3] Antologia
litúrgica, p. 249.
[4] Antologia
litúrgica, p. 256.
[5] Agostinho e
Ambrósio encontravam-se em Milão, que mantinha o costume de não jejuar no
sábado, enquanto que em Roma, o costume de jejuar no sábado era previsto (cf.
Antologia litúrgica, p. 818).
[6] São Leão Magno, papa. Sermões sobre as
coletas, a quaresma e o jejum de pentecostes. Petrópolis: Vozes, 1977.
[7] A Carta
Preparatória para as Festas Pascais, de janeiro de 1988 explicita melhor o
sentido da virtude e a prática da penitência, como “partes necessárias da
preparação pascal: da conversão do coração deve brotar a prática externa da
penitência, quer para os cristãos individualmente, quer para a comunidade
inteira; prática penitencial que, embora adaptada às circunstâncias e condições
próprias do nosso tempo, deve, porém, estar sempre impregnada do espírito
evangélico de penitência e orientada para o bem dos irmãos e irmãs”.
[8] Ascese: é um
termo teológico o qual designa o esforço que todo cristão faz, aberto à graça
de Deus, para deixar que esta mesma graça atue em sua vida. Não é voluntarismo,
sobretudo é a partir de nossa limitação que nos abrimos à graça. É uma atitude
de querer vencer. É como o cego que encontra com Jesus e diz: ‘Senhor, eu quero
ver’.
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