O canto litúrgico quaresmal - Ano C - 2016
Eurivaldo Silva
Ferreira
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O Canto dos Anjos, adquirido da internet (He Qi Galley) |
O
canto e a música são elementos altamente simbólicos e pedagógicos. A música é
parte essencial da existência da humanidade e modela, de certa forma, as
culturas. Com música se celebram a vida e a morte, o trabalho e a festa, o riso
e a dor... Entremeada ao tecnicismo, percebe-se na arte musical um momento de
prazer, de encantamento, é como se fosse uma pausa restauradora que se faz
através da musicalidade, do som e do canto. O número 112 da Sacrosanctum Concilium [SC] afirma que a
música na liturgia tem foro privilegiado.
A
música litúrgica, revestida de seu texto poético e melodia, tem força de
realizar aquilo que significa quando se coloca a serviço mesmo da liturgia,
solenizando-a, e santificando a assembleia celebrante, por isso ela é o sinal
sensível mais eloquente da assembleia celebrante (SC, 7, 112, 113). O canto,
com uma melodia eficaz e uma poesia consistente e qualitativa, é capaz de
exprimir a alegria do coração que vibra, ao ressaltar a importância da
celebração, solenizando-a (Dies Domini,
João Paulo II).
No tempo da Quaresma, o canto litúrgico se
reveste do luto, da ausência do “glória” e do “aleluia”, um canto sem flores e
sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo”, em que nos
colocaram nossos pecados (Sl 130); um canto de quem suplica a misericórdia do
Senhor (Sl 51,3)[2]. Por
meio do canto litúrgico, a Quaresma então se traduz num itinerário em que o
‘errante’ se volta para Deus, escutando sua Palavra, abrindo o coração e
deixando-se guiar por ele. Hoje, somos nós esses ‘errantes’, que queremos nos
voltar a Deus, escutá-lo, e não mais proceder como assim o fizeram nossos
antepassados. (cf. Sl 95/94,7-10). A estrada do Êxodo, da qual fala o Prefácio V
da Quaresma, pela qual tomamos consciência de que somos povo da aliança, é o
sinal de nossa caminhada quaresmal.
Consideramos
que, aguçando os sinais sensíveis do canto litúrgico quaresmal – melodia,
ritmo, texto poético, imagens e paisagens, rimas e expressões – por meio de sua
aplicação pedagógica, mesmo fora das celebrações – a comunidade se torna
protagonista do evento da salvação, realizada por toda a caminhada quaresmal, e
tendo sua culminância na Páscoa, espalhando suas ramificações ao longo de todo
o ano litúrgico. Assim:
O
canto de Abertura das celebrações
quaresmais cumpre o papel de criar comunhão, promover na assembleia um estado
de ânimo apropriado para a escuta da Palavra de Deus[3],
dando o clima da celebração e introduzindo a assembleia no mistério do tempo
litúrgico, do domingo ou da festa[4],
já que com suas características próprias convoca a assembleia e, pela fusão das
vozes, junta os corações no encontro com o Ressuscitado[5].
Pelo
canto do Ato Penitencial aclamamos o Senhor como Kyrios e imploramos a sua misericórdia. A fórmula 3 do Missal Romano
contém diversas aclamações próprias para o tempo da Quaresma[6].
O canto dessas partes constitui o próprio rito, é ocasião específica em que a
assembleia toma sua parte no conjunto dos cantos da celebração, motivada pelo
animador, alternando entre grupo de cantores ou solistas, como é o caso do Kyrie eleison e do Cordeiro de Deus, da família das ladainhas, ou ainda responde
cantando em uníssono a exortação de quem preside: Eis o mistério da fé! Anunciamos, Senhor... Dependendo da forma e
do arranjo, a melodia dessas partes proporciona uma participação mais
exaustiva, como é o caso do Hino de
Louvor e do Santo, cantos que são
constituídos de louvores, súplicas e júbilos ao Cristo e ao Pai. Em outro
contexto se situa o canto das respostas da
Oração Eucarística, essas pequenas intervenções possuem caráter de
aclamação e carece que toda assembleia participe.
O
canto do Salmo responsorial constitui
um comentário lírico-poético da primeira leitura. Ocupa um espaço significativo
como resposta por dois motivos: porque é escolhido para responder à Palavra de
Deus proclamada, sendo a própria Palavra, prolongando, assim, seu sentido
teológico-litúrgico e espiritual. Este prolongamento vai se dando enquanto o(a)
salmista entoa as estrofes como solista e a assembleia repete o mesmo refrão,
num uníssono[7]. É
por isso que é chamado de responsorial. É um canto sem “malabarismos”
melódicos, contudo seja entoado ao ritmo da palavra e da poesia, “cantilado”. Não
pode ser omitido, haja sempre a forma cantada ou proclamada. Pelo canto do
Salmo e pelo silêncio o povo se apropria dessa Palavra de Deus e a ela adere
pela profissão de fé. O canto favorece a compreensão do sentido espiritual do
salmo e contribui para sua interiorização[8].
Pelo
canto da Aclamação a assembleia dos
fiéis acolhe e saúda o Senhor, que lhe falará no Evangelho. Omitindo-se a
expressão “Aleluia”, este canto louva o Verbo de Deus, que nos tirou das trevas
da morte, introduzindo-nos no reino da vida. Além de acompanhar a procissão do
livro dos evangelhos (evangeliário) até a estante da palavra, este canto
prepara o coração dos fiéis para a escuta atenta d’Aquele que só tem a nos
dizer “palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68) [9].
O solista ou o grupo de cantores entoa o versículo do domingo respectivo.
O
canto que acompanha a Procissão das Oferendas
se prolonga pelo menos até que os dons tenham sido colocados sobre o altar. Pode
se prolongar também durante o recolhimento das ofertas da comunidade, mesmo sem
a procissão dos dons. Sua finalidade consiste em dar um maior significado à
coleta, criando um clima de alegria, de generosidade, de louvor, de bendição
pelos dons, todavia seu texto não precisa falar necessariamente de pão e de
vinho, muito menos ainda de oferecimento ou oblação[10].
Como não é um canto obrigatório, estamos cada vez mais conscientes de que o
mais importante é o canto de quem preside, por isso na apresentação do pão e do
vinho este entoa em voz alta as fórmulas da bênção, às quais o povo aclama
cantando “Bendito seja Deus para sempre”. No entanto, nada impede que um solo
instrumental seja executado antes do canto da presidência[11],
o que pode ser uma das raras oportunidades para o organista virtuoso, ou o
violonista, ou flautista habilidoso, ou ainda um conjunto de câmara, executarem
uma peça musical propícia ao momento ritual[12].
O
canto da Comunhão acompanha a
procissão daqueles que se dirigem à mesa da comunhão. Tem início quando quem
preside comunga, prolongando-se enquanto os fiéis comungam, até o momento que
pareça oportuno. Este canto, que retoma sempre o sentido do Evangelho do dia, deve
ser cantado por toda a assembleia, expressando pela união das vozes a união
espiritual daqueles que comungam, demonstrando ao mesmo tempo a alegria do
coração e tornando mais fraternal a procissão dos que vão avançando para
receber o Corpo e o Sangue de Cristo[13].
Se não for cantado, vale aqui a mesma orientação aos instrumentistas dada para a
procissão dos dons. Os instrumentos podem ainda fazer interlúdios entre as
estrofes e o refrão, por se tratar de um dos cantos mais longos da celebração[14].
Sinal
sensível da assembleia pascal são os instrumentos
musicais, por isso seu som durante o tempo da Quaresma é reservado apenas
para sustentação da afinação do canto da assembleia e de quem a anima, por aí
entendemos o motivo de reduzirmos o volume e a quantidade de instrumentos
musicais, assim favorecendo o silêncio contemplativo em momentos propícios nas
nossas assembleias litúrgicas (Carta preparatória para as festas pascais, nº
17). Que os microfones sejam reservados apenas àqueles que executam solos ou
sustentem o canto da assembleia[15]. Os
ministros músicos, tendo em vista sua sensibilidade e dedicação litúrgica,
devem particularmente prestar atenção a essa orientação.
Os
ministros que ornamentam o espaço
litúrgico devem também se apropriar dessa índole quaresmal. A ausência de
flores e folhagens é a expressão de uma espera vigorosa pela páscoa que se
aproxima, com todo seu esplendor e colorido. De fato, a Igreja nos educa na fé,
nesse grande itinerário pedagógico que é o ano litúrgico, por isso o vazio, a
ausência desses sinais que são sensíveis ao nosso sentido, e ao mesmo tempo
visíveis, fazem com que todo nosso corpo participe e se aproprie das
características específicas do tempo da Quaresma, reservando as alegrias que
eles nos proporcionam para aquela esperada noite da Vigília Pascal, e
prolongando-as durante todo o tempo pascal[16].
No
Brasil, é costume expressarmos nosso gesto exterior da Quaresma com os apelos
que a Campanha da Fraternidade nos suscita: “Casa comum, nossa responsabilidade”, com o lema:
“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não
seca (Am 5,24)” – CF 2016. Tendo em vista sua característica ecumênica, no CD
gravado não foram contempladas músicas litúrgicas para as celebrações
eucarísticas do tempo da Quaresma [cinco semanas e o Domingo de Ramos e da
Paixão do Senhor]. Havendo, por exceção, celebrações ecumênicas ao longo deste
tempo, é recomendado o uso das canções contempladas no CD[17].
Para
facilitar a todos quantos se dedicam ao ministério da animação do canto e da
música em nossas comunidades, aos instrumentistas, salmistas e integrantes de
grupos vocais e instrumentais, preparamos abaixo uma tabela com as sugestões
propostas pelo Hinário Litúrgico da CNBB, bem como outras composições aprovadas
pelo Setor de Música Litúrgica da CNBB e outras gravações, além de cantos
tradicionais próprios deste tempo.
Contudo,
o bom músico litúrgico saberá tirar de seu baú aquelas composições que tão bem
retornam neste tempo, às quais lhe expressam o sentido característico com seu
conteúdo, temas, a Palavra
de Deus, enfim, o aspecto do mistério pascal que celebramos. É preciso saber
escolher bem os cantos, que acentuem a conversão, a misericórdia, o perdão, a
fraternidade e solidariedade, a vida, a luz, inspirados no Evangelho do dia, mas
sempre com os horizontes voltados para a Páscoa de Jesus, mistério central que
celebramos em nossas liturgias. Cantos tradicionais e que já estão na memória
do povo, devem fazer parte do repertório: Pecador,
agora é tempo... O vosso coração de pedra... Prova de amor maior não há...[18]
Pensemos
então que a Quaresma é um ‘tempo de teste’ para nossa fidelidade na resposta ao
plano de Deus. Mas, por vezes esquecemos que somos batizados, e por isso
perdemos a direção. É justamente aí que este tempo nos propicia um desejo de
renovar e reavivar em nossos corações as disposições com que, durante a Vigília
Pascal, pronunciaremos de novo as promessas do nosso batismo. As leituras que
ouviremos durante esse tempo nos recordam que somos seres batismais, em
constante conversão (característica das leituras da Quaresma do Ano C).
Enfim,
viver a Quaresma é saborear o difícil itinerário da passagem da morte para a
vida. Sabemos que passamos da morte à vida se amamos os irmãos (cf. 1Jo 3,14).
Sobretudo, devemos lembrar que somos discípulos/as de Jesus, que superou o
fracasso humano da cruz com um amor que vence a morte, e que, de nossa parte, o
jejum e a caridade, traduzidos na solidariedade fraterna em favor do/a outro/a,
do mundo, do planeta e do cosmos – conforme nos lembra a Campanha da
Fraternidade deste ano – nos colocam nesse mesmo patamar de Jesus, que,
intensificando seu desejo de amar até o fim, passou pelo mal, vencendo-o.
Juntemos
o nosso desejo ao de Jesus. Assim, como diz a regra de São Bento, com a alegria
do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa Páscoa.
[1] Kolling, Ir. Miria T., em
artigo produzido para subsídios litúrgicos.
[2] Veloso, Reginaldo.
Introdução ao Hinário Litúrgico da CNBB, Volume II – Ciclo da Páscoa, São
Paulo: Paulus, pág. 7.
[3] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da
CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música
litúrgica), pp. 135-136.
[4] CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil
(Documentos da CNBB nº 43, 1989). 21ª edição. São Paulo: Paulinas, 2008, pp.
83-84.
[5] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da
CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música
litúrgica), pp. 135-136; cf. SC, 112.
[6] O CD “Partes
fixas - Ordinário da Missa”, gravado pela Paulus, com melodias do Hinário
Litúrgico da CNBB, possui várias possibilidades de se cantar essas partes que
compõem o próprio rito (Senhor, tende piedade, Santo, Aclamação memorial, Amém
e o Cordeiro de Deus, que acompanha a fração do pão).
[7] Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São
Paulo: Paulus, 2004, pág. 26 (Coleção Liturgia e Música 1).
[8] Idem.
[9] Idem, pág. 32.
[10] Idem, pág. 34.
[11] Idem.
[12] Quanto ao uso dos
instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica
no Brasil, às págs. 115-118.
[13] Cf. Missal Romano
(2002), 86, opus cit. in Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São
Paulo: Paulus, 2004, pág. 60 (Coleção Liturgia e Música 1).
[14] Quanto ao uso dos
instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica
no Brasil, às págs. 115-118.
[15] Cf. Carta aos agentes
da música litúrgica, CNBB, setembro/2008.
[16] Dois subsídios
interessantes para aprofundamento desse tema são os livros de Ione Buyst, Símbolos na Liturgia, Ed. Paulinas, 1998
e Celebrar com símbolos, Ed.
Paulinas, 2001.
[17] O Texto-base da CF
2016, pág. 65-74, traz uma bonita sugestão de celebração ecumênica, inclusive
citando canções próprias desta CF e de outras campanhas ecumênicas já
realizadas no Brasil.
[18] Kolling, Ir. Miria T., em
artigo produzido para subsídios litúrgicos.
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