Retorno à liturgia como fonte de espiritualidade



Devo confessar toda a minha preocupação e também o meu sofrimento com uma permanente incompreensão da relação liturgia e espiritualidade, ou melhor, com um equívoco que me parece sempre mais profundo e certificado. Quem, como eu, conhece há anos uma vida cristã alimentada pelos exercícios de piedade, pelas devoções e manifestações da piedade popular, alimentou grandes esperanças quando veio a reforma litúrgica: naquele momento, de fato, se descobria e se assumia a convicção de que a vida espiritual pessoal não pode ter outra fonte que a liturgia, a liturgia eucarística sobretudo, a liturgia das horas, a liturgia dos sacramentos.
Como não admitir, por exemplo, que a restauração da vigília pascal desejada pela reforma de Pio XII, no início dos anos 50, mudou a nossa espiritualidade, pondo no seu centro o mistério pascal, o mistério da morte e ressurreição do Senhor Jesus? E como esquecer o “missalzinho”, aquele excelente livro de oração pessoal, que oferecia a eucologia das coletas do tempo litúrgico e das diversas necessidades e da liturgia das horas aos domingos qual fonte da espiritualidade cotidiana.
Mas o que aconteceu depois, em contradição com a intenção da reforma litúrgica e o amplíssimo material que ela punha à disposição como fonte de espiritualidade autêntica para todo cristão? Por que, na Itália, as dioceses e seus departamentos litúrgicos, quando há uma assembleia diocesana, ou de presbíteros, ou de religiosos, ao invés de celebrar a liturgia das horas, preferem fabricar, comumente com diletantismo, liturgias que não correspondem mais a lex orandi?
João Paulo II nos recordou que “nada de tudo o que fazemos na liturgia pode aparecer como mais importante do que aquilo que (invisivelmente, mas realmente) faz o Cristo por obra do seu Espírito” (Vicesimus quintos annus, 10). E, no entanto, na espiritualidade atual, basta ler os autores espirituais mais em voga, a referência à liturgia está ausente: muitas são as referências à oração; raríssimas as referências à liturgia... É bom que se fale da relação entre Bíblia e espiritualidade, ou da lectio divina, mas o mesmo esforço que alguns bispos, Igrejas locais e membros do povo de Deus fizeram pela lectio, deveria ser feito em favor da liturgia, a fonte da espiritualidade: o lugar privilegiado para acolher a Palavra é justamente a liturgia!’
O enunciado conciliar “A oração pública da Igreja, fonte de piedade e alimento da oração pessoal” (SC 90) não encontrou até agora uma atuação e aguarda no futuro próximo um esforço sério da parte de todas as Igrejas locais para que a liturgia corresponda à procura de uma atmosfera orante, sem cair em expressões devocionais e intimistas.
Esta divergência entre liturgia e espiritualidade  infelizmente é devida também à responsabilidade dos agentes litúrgicos e pastorais que de fato não reconhecem na liturgia a qualidade de fonte da teologia, da espiritualidade e, em consequência, da pastoral. Assim a espiritualidade é sempre mais narcisista, sempre mais preocupada em oferecer soluções terapêuticas, sempre mais individualista e, como tal, impede a assiduidade, a participação na liturgia da Igreja, que é “participação ativa e operante” (SC 14) quando consegue nutrir, quando consegue ser acolhida como alimento na vida de fé do crente. Porque na liturgia cristã trata-se antes de acolher, não de dar, de tornar sujeitos de fé, esperança e caridade, não de fazer.
Os cristãos hoje querem encontrar na liturgia o lugar no qual experimenta o que a fé permite viver, isto é, o que pode inspirar e educar a sua conduta, ou seja, o que eles/elas podem receber e testemunhar. É na liturgia que deveria ser possível escutar Jesus Cristo falando e chamando: “Se queres..., Vem..., segue-me..., levanta-se..., anda...”, não na intimidade individualista a partir de leituras devotas no âmbito de reuniões nas quais se testemunha não a presença do Senhor e o ressoar da sua “Palavra viva e eficaz” (cf. Hb 4,12), mas onde se afirma: “olha eu aqui”.
Enfim, gostaria indicar para o futuro próximo o compromisso de levar a sério a relação entre liturgia e evangelização. Na verdade a Igreja pode educar na fé ao celebrar, em primeiro lugar, o “mistério da fé” com a sua liturgia e os seus sacramentos, porque justamente a liturgia é o primeiro ato de evangelização: as fontes da educação à fé, da evangelização, da vida cristã é a liturgia. Não há testemunho (martyria), não há serviço (diakonía) e não há comunhão (koinonia), sem a prioridade da liturgia (leiturghía), onde o “mistério da fé” habilita os fiéis para a missão e para o serviço, criando e sustentando a comunhão, que é sempre comunhão em Cristo na força do Espírito Santo.
Se é verdadeiro o adágio querido a Henri de Lubac, segundo o qual “a Igreja faz a liturgia e a liturgia faz a Igreja”, então a liturgia deve ser reconhecida em sua função de fonte para a vida da Igreja. Mas se não se é capaz de mostrar esta evidência no tecido da ação eclesial, é inútil reclamar da escassa repercussão da eucaristia dominical na vida dos crentes.
A prática da fé, o primeiro anúncio da fé, a educação à fé podem por acaso dispensar “a fé celebrada”, isto é, a liturgia, “eloquência eclesial da fé”? A incapacidade mistagógica que marca as nossas liturgias não depende justamente do fato que a liturgia não é percebida como anuncio da boa notícia, comunicação do Evangelho, mas é, ao contrário, vivida como uma espécie de obrigação que faz parte da vida cristã, mas que não é a sua fonte?
A liturgia é lugar da experiência da Palavra e do Espírito, mas lugar que continua sendo muito humano, em que a pessoa na sua inteireza, na sua unidade de corpo, psique e espírito, é sujeito da experiência do Deus que vem a ela. Portanto, só com uma atenção e uma inteligência que saiba captar a humanidade da liturgia é possível acolher nela o "mistério da fé". Lê-se no prólogo do quarto evangelho: "Ninguém jamais viu a Deus; mas o Filho único, que é Deus e está na intimidade do Pai, foi quem o deu a conhecer" (Jo 1, 18). Paralelamente, poderíamos dizer que só na humanidade autêntica da liturgia pode-se encontrar o relato de Deus, porque a liturgia, para nós, cristãos, é o estar na intimidade do Pai, aqui e agora.
  

Enzo Bianchi, prior da Comunidade de Bose, Itália (tradução: Penha Carpanedo).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Celebração da Palavra de Deus e sua culminância na missão

COMENTÁRIO SOBRE A MÚSICA “FAZ UM MILAGRE EM MIM”

Os gestos de Jesus na última ceia