Advento: memorial da esperança cristã

 
José Lisboa Moreira de Oliveira*
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
extraído de www.adital.com
As ciências da religião mostraram que, desde o surgimento da religiosidade, o ser humano religioso sacraliza o tempo. Ele procura inserir intervalos de tempo sagrado no "tempo profano”. Mircea Eliade afirma que o tempo sagrado serve para reatualizar eventos que tiveram lugar nos primórdios, no passado mítico. No tempo sagrado acontecem as festas religiosas e as liturgias. Elas servem para reintegrar o tempo ordinário ou normal no tempo mítico. Através do tempo sagrado os seres humanos religiosos acreditam recuperar o eterno presente e fazer experiência da presença da divindade. Assim sendo, na concepção da pessoa religiosa o tempo sagrado permite que o mundo renove-se anualmente e reencontre a sua santidade original. Nessa concepção não há apenas a cessação de um tempo, como pensam as pessoas modernas, mas a abolição do passado e a cessão do tempo decorrido. O tempo que existiu até então desaparece por completo e surge um novo tempo. E ao participar das festas sagradas que marcam o tempo sagrado as pessoas também são recriadas e passam para uma nova existência. Neste sentido a festa sagrada não é a comemoração de um acontecimento do passado, mas a sua reatualização.

Por meio dos tempos e das festas sagradas os seres humanos religiosos acreditam que se tornam contemporâneos dos deuses. Creem que por meio delas podem reencontrar a plenitude da vida e experimentar a sensação de existir como criaturas dos deuses. Podemos então afirmar que na sacralização do tempo se encontra uma das grandes aspirações de todo ser humano: voltar àquele estado original do mundo nascente que assegura uma vida realmente feliz. Trata-se do desejo de uma vida autêntica, simples, mas carregada de significado e de sentido. Por isso ele está disposto a colaborar com as divindades, fazendo de tudo para reestabelecer este estado originário de existência. Podemos então afirmar que neste elemento da religiosidade nós encontramos não só a sede do sagrado, mas também a sede do ser, entendendo isso como desejo profundo de autenticidade e de felicidade.

Isso vale também para o cristianismo e para cada um dos seus tempos litúrgicos e para cada uma de suas festas e celebrações. Por meio dos tempos sagrados e de suas celebrações litúrgicas o cristianismo entende trazer para o momento presente o tempo de Cristo. O cristão e a cristã se conectam a Cristo participando das festas dos tempos sagrados, tornando-se ramos verdes e frondosos da grande videira que é Jesus (Jo 15,1-6). Os tempos sagrados do cristianismo querem ajudar os cristãos e as cristãs a perceberem que Jesus Cristo não é um personagem do passado, do qual guardamos algumas lembranças bonitas. Querem revelar que "Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e será sempre o mesmo” (Hb 13,8).

O objetivo de tudo isso é robustecer a fé, a esperança e a caridade, de modo que os cristãos e as cristãs não precisem de doutrinas estranhas e de certas regras exóticas para viver (Hb 13,9). O objetivo dos tempos e das festas sagradas é alimentar a autonomia e a liberdade de espírito, dadas por Cristo, de maneira tal que as pessoas não precisem viver submetidas a normas esquisitas que escravizam (Gl 5,1-6). Ao participar dos tempos, das festas e das liturgias sagradas, os cristãos e as cristãs experimentam em profundidade o amor e a ternura da Trindade que afastam o medo e o temor (1Jo 4,18).

No cristianismo, cada tempo e cada festa litúrgica entende realçar alguns elementos significativos de toda essa dinâmica. Assim, por exemplo, o tempo do Advento, período de quatro semanas que antecede o Natal, procura nos ajudar a refletir sobre a esperança. Esta, a esperança, é uma das características fundamentais do cristianismo. Sem ela a existência humana não teria sentido; seria mero desespero. Isso porque, diz o apóstolo Paulo, "a esperança não engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

A esperança, por sua vez, brota da certeza de que o Reinado de Deus já está acontecendo no meio da humanidade. Apesar das nossas fragilidades, da violência e da injustiça, Deus Trindade vai conduzindo a história humana na direção do Pleroma, ou seja, daquela Plenitude que ele mesmo sonhou para todo o cosmos, para todo o universo, e que se encontra no seu Filho Jesus (Cl 1,19-20). É a esperança que alimenta a nossa existência e nos faz, como Abraão, "esperar contra toda esperança” (Rm 4,18). Ou seja, é a esperança que nos impulsiona a seguir, mesmo quando tudo ao nosso redor parece desmoronar e não ter mais sentido. Porém, para que isso aconteça é indispensável não ver a esperança como uma "virtude cristã”, mas como dimensão essencial da existência cristã. Se nós vemos a esperança como "virtude” a conquistar, corremos o risco de nos livrarmos dela exatamente quando mais precisamos. Para que a esperança seja a propulsora do nosso existir é indispensável vê-la e senti-la como graça que já nos foi dada por Cristo. Não é preciso mais conquistá-la. Ela já está dentro de nós. Basta perseverarmos nela: "Na esperança, nós já fomos salvos” e "é na perseverança que aguardamos o fruto que dela virá” (Rm 8,24-25).

O Advento deveria ser o tempo da Igreja que realiza o memorial da esperança cristã. Preparando-nos para celebrar o natal de Jesus, "nossa esperança” (1Tm 1,1), este período litúrgico deveria, por meio de suas celebrações e reflexões, levar os cristãos e as cristãs a serem mais esperançosos. Infelizmente boa parte do povo cristão ainda vive na desesperança. Sinal evidente disto é a corrida desesperada por milagres e curas. É a infinita carga de promessas e o consumo interminável de "kits de salvação” (medalhas, santinhos, frascos de água benta e de óleos etc.) vendidos nos santuários, igrejas e livrarias religiosas.

Esta falta de esperança leva ao descompromisso e à indiferença. Leva ao individualismo religioso: cada um e cada uma querendo se salvar sozinho e para se salvar sozinho quer sempre levar vantagem sobre os outros. O máximo que fazemos são alguns atos assistencialistas, como, por exemplo, distribuição de comidas, roupas e cobertores em determinadas ocasiões. Mas, nos recusamos a exercer a cidadania e a participar ativamente da vida social, como nos pediu o Concílio Vaticano II. E sem este tipo de participação e de engajamento não há como mudar os destinos do mundo.

É verdade que o Reinado de Deus já está acontecendo, mas o Pai quer que, pela esperança ativa, apressemos a sua chegada e a sua plena realização (2Pd 3,12). E a humanidade tem o direito de receber dos cristãos e das cristãs um testemunho concreto de esperança (1Pd 3,15). E este testemunho concreto não acontece por meio de palavrórios, de rezarias e de esmolinhas, mas da participação ativa em projetos de justiça e de solidariedade. De fato, como nos ensina Tiago, a fé sem ações concretas é um cadáver (Tg 2,26).

Somos, pois, convidados a viver o tempo do Advento como tempo de esperança. Para tanto seria bom fazer algumas mudanças na liturgia católica do Advento, começando por abolir o clima penitencial que o caracteriza e que se expressa pela ausência do Glória e pela cor roxa dos paramentos. A esperança é verde e não roxa! Esperança não rima com tristeza, mesmo quando não vemos com clareza; quando as coisas parecem caminhar para o precipício. Esperança rima com alegria (1Ts 2,19-20). Precisamos, pois, devolver a alegria ao tempo do Advento: "Fiquem sempre alegres no Senhor! Repito: fiquem alegres! Que a alegria de vocês seja notada por todos. O Senhor está próximo. Não se inquietem com nada” (Fl 4,4-6).

[*Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário. É autor de Antropologia da Formação Inicial do Presbítero, por Edições Loyola].

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