Descobrir o Cristo frágil em meio às contradições da esperança


Eurivaldo Silva Ferreira

       
          O tempo do Advento, que logo celebraremos, nos coloca em sintonia com um Deus que se dá através da graça. Sua graça é misteriosamente percebida pela esperança da vinda futura de Jesus Cristo, e, concreta, na sua vinda histórica: ‘ele veio uma vez na carne, mas virá uma segunda vez, na glória’. Mas, continua nos visitando na pessoa do irmão, da irmã, como numa vinda intermediária.

        São Bernardo de Claraval afirma que a vinda intermediária de Cristo acontece de forma oculta somente aos que o veem em si mesmos e recebem a salvação. Na vinda do Cristo compreendemos a manifestação do poder da graça de Deus[1]. Nesta compreensão o esforço de participar do bem do mundo e para o mundo representa o esforço de nossa participação na recepção da proposta de salvação oferecida por Jesus. Jesus é então o esforço moral que representa o alcance do bem em nós. Também em Jesus, a encarnação não se realiza apenas no seu nascimento, mas no decorrer de sua vida, ou seja, ao longo de sua vida ele foi manifestando em obras e atitudes a própria graça operada pelo Pai, desde o princípio, a graça, então, é fato inerente ao ser de Jesus, por isso ele passa a sua vida fazendo o bem. O que seria então fazer o bem num mundo corrompido pela maldade e pelo ódio? Tentemos analisar e investigar essa proposta a partir da espiritualidade do Tempo do Advento.

          O Prefácio I do tempo do Advento diz que Cristo veio revestido de nossa fragilidade.

          Na verdade, é justo e necessário, é nosso dever e salvação dar-vos graças, sempre e em todo o 
          lugar, Senhor, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso, por Cristo, Senhor nosso.
          Revestido de nossa fragilidade, ele veio a primeira vez para realizar seu eterno plano de  
          amor e abrir-nos o caminho da salvação.
          Revestido de sua glória, ele virá uma segunda vez para conceder-nos em plenitude os bens  
          prometidos que hoje, vigilantes, esperamos.
          Por essa razão, agora e sempre, nós nos unimos aos anjos e a todos os santos, cantando a  
          uma só voz: 

          O Prefácio é um texto que contém toda uma construção de propostas de louvores ao Pai e que aparece na introdução da liturgia eucarística, contemplando as características específicas daquela celebração, daquele tempo ou da festa litúrgica que se está celebrando. Localizado no início da Oração Eucarística, ele dá como que o tom da celebração daquele dia, unindo a mesa da Eucaristia com a mesa da Palavra, culminando este motivo de louvor com o canto do Santo, Santo, Santo. Neste prefácio trata-se de dizer que Cristo esteve presente neste mundo, sendo homem, e conheceu as nossas misérias, mas que, numa segunda vinda sua, transformará essas situações em vida gloriosa.

          Hoje, cabe-nos perguntar: quais são as misérias que conhecemos? Se as conhecemos, é com o olhar do Cristo revestido de nossa fragilidade? Levando em conta o olhar de Cristo sobre nossas fragilidades, podemos também, em consequência disso, nos fazermos uma pergunta: quem são hoje os que se encontram em situação de fragilidade? A Igreja nos ajuda a entender que são os pobres, principalmente os pobres do chamado Terceiro Mundo, miseráveis e famélicos. Eles realmente conhecem a Cristo, sabem que Cristo tornou-se como um deles? Ou: quem é Cristo para nós, hoje, ameaçados pelo inferno atômico ou pelo holocausto climático? Ou ainda: quem é Cristo para a natureza moribunda e para nós?

          Nossa investigação é a de considerar que por detrás dos textos litúrgicos há uma cristologia implícita, que nos revela, de algum modo, o Cristo que nos quer salvar, continuamente. Sabemos, contudo, que a salvação oferecida pelo próprio Cristo passa pela natureza da celebração, isto é, seremos salvos em comunidade, ou ainda, seremos salvos em assembleia celebrante, reunidos como um único povo de Deus, assim nos garante a Lumen Gentium.

          Para entenderemos então a questão da fragilidade, apontada pelo Prefácio I do Tempo do Advento, e, voltando à questão, é necessário analisarmos as respostas dos pensadores da teologia moderna. Segundo este pensamento, deverá levar-se em conta os “sofrimentos do tempo presente” e das “criaturas submetidas à transitoriedade” e o próprio Israel. Israel mesmo foi quem presenciou a atuação do Deus que passa por sua existência, salvando-o. O livro do Êxodo retrata bem esta experiência. A exemplo do que se passa com a cruz, também aqui não há respostas prontas. Por outro lado, inacabada e necessitada de revisão, a cristologia, orientando-se na pessoa de Jesus, na sua história total e na cruz, se torna pós-realidade e promessa, pois introduz neste novo tempo e nesta nova criação, na qual o crucificado não mais será nenhum escândalo e nenhuma loucura[2], porque ele se tornou o fundamento para o “tudo é novo”, (cf. Ap 21,5). É esta a cristologia que termina com o “Amém” e o “Vem, Senhor Jesus” (cf. Ap. 22,20), expressões características do Tempo do Advento.

          Portanto, falar de fragilidade no mundo de hoje é falar de desapontamento, de decepção, de angústia, e de outras características negativas mais que o leitor quiser apontar. O fato é que, se reduzíssemos a presença de Deus à existência histórica de Jesus de Nazaré, talvez nos sentiríamos um pouco frustrados. A presença de Jesus entre nós, vivendo como um ser frágil, não nos indica um cenário de descontentamento, mas devemos considerar que o Deus de Israel, que escreveu sua história de salvação em meio a decepções, tragédias e frustrações, é o mesmo Deus que quer salvar o seu único povo, por isso a salvação de Cristo acontece em meio a tudo isso, e até mesmo na mais difícil situação de fragilidade.

          Se perguntarmos por Jesus de Nazaré hoje, diríamos, eventualmente, que esteve no mundo e constataríamos que não está mais. Subiu ao céu. Voltou ao Pai! O máximo que, nesse caso, nos caberia fazer seria uma pesquisa histórica para descobrir alguns rastros, em gestos e palavras, que teriam sobrado do passado. Talvez concluiríamos com alguma certeza: ele esteve aqui, aqui ele nasceu, ali morreu, acolá subiu ao céu... Graças à Cristologia, que nos permite uma investigação mais séria e aprofundada do evento Jesus de Nazaré, nossa constatação não para por aí. Nossa realidade nos permite avançar no pensamento teológico e, já que somos gente de fé, acreditamos que Jesus garantiu aos seus discípulos que ficaria com eles até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20). Sua presença, a presença de Deus entre nós, está, pois, assegurada enquanto durar a história humana na terra, mesmo que continue havendo decepções, desesperos e fragilidades, característicos da natureza do mundo terreno. Em meio a essas situações, cabe a nós, enquanto celebramos na esperança de que Cristo que vem para refazer a dor em alegria, a fragilidade em segurança, a morte em vida, individualizá-la, ou seja, descobrir Cristo presente em nossos dias. Somos capazes disso?

          O Tempo do Advento nos coloca nessa chave de descoberta. O apóstolo Paulo em  1Cor 10,11 afirma que a plenitude dos tempos chegou, mas, como afirma o número 48 da Lumen Gentium, a Igreja aguarda ansiosamente o estabelecimento de “novos céus e nova terra”, participando dessa espera, administrando os sacramentos e anunciando a boa nova do Reino, numa atitude de contínua peregrinação, até que o Reino se cumpra definitivamente[3]. Quer dizer, a plenitude dos tempos chegou, mas não ainda em sua completude, pois é necessário que em nossos corpos mortais ainda se conclua o processo de salvação iniciado por Jesus, nos exorta também o apóstolo Paulo.

          Desde os primeiros cristãos a interpretação da existência de Jesus de Nazaré é algo inerente à nossa fé, que faz parte de um cabedal e elementos constitutivos e normativos também da fé da Igreja. Nós, os cristãos de hoje, podemos continuar essa interpretação, de acordo com as nossas características de vida. tanto num patamar como noutro existem elementos que precisam ser continuados. Tanto num como noutro é necessário fazer uma atualização do evento Jesus de Nazaré, por isso a Cristologia de hoje  carece de uma atualização que dê conta do mundo em que vivemos e que torne acessível à humanidade  os dados vitais do próprio evento Jesus de Nazaré. A fidelização à realidade pode passar por expressões outras de atualização, mas tem que guardar a relação pela qual ela se torna verdadeira e real.

          A pergunta fundamental continua sendo aquela: quem é Jesus? O que é oriunda da Escritura e dá origem à profissão de fé. Por que ele se tornou frágil como nós? Essa resposta que implica na profissão de fé, assim como fez Zacarias em seu cântico, implica também na compreensão do que se diz. Na verdade, hoje já não cantamos mais como Zacarias o fez, apoiado no que conhecia da tradição bíblica. Isso vai um pouco mais longe do que simplesmente a repetição da frase bíblica. De um lado, o que significa Cristo, o Sol do Oriente, Filho do Homem, Filho de Deus e Deus Vivo? Não são coisas que têm sentido transparente vivo, mas que precisam de novas interpretações.

          Que o Tempo do Advento nos ajude a entender o Jesus de Nazaré frágil e vivente como nós. Que nós o tenhamos como paradigma na luta para vencermos as fragilidades do mundo moderno.

          Feliz Tempo do Advento a todos!

 [1] Liturgia das Horas, Quarta-feira da Primeira Semana do Advento, pp.137-138.
 [2] Simeão afirma em seu cântico que o menino que ele tem agora nos braços será motivo de queda e soerguimento para os filhos de Israel, portanto, alegria para alguns e escândalo para outros (cf. Lc 2,29-32; 34)
 [3] Lumen Gentium, 48.

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