A Páscoa nossa de cada dia



Os mistérios do tempo

Penha Carpanedo

A seção “A páscoa nossa de cada dia”, em nossa revista, é um espaço onde repartimos ecos de experiência ou meditação de quem mergulhou no mistério de Deus em sua vida e nos ajuda a traduzir no concreto de nosso cotidiano o que celebramos na liturgia.
Nesta edição trazemos mais uma vez a voz de Anselm Grün[1], agora sobre a convivência com o tempo , do seu livro No ritmo dos monges , editado pela Editora Paulinas. Embora o seu ponto de partida seja a comunidade monástica da qual faz parte, na Alemanha, o que ele propõe está muito próximo de toda pessoa que busca um equilíbrio interior numa cultura que “corre contra o tempo”.

Trata-se de re-descobrir o tempo, além do que é medido pelo relógio, no qual somos chamados/as a imprimir uma marca, a escrever uma história, a viver no limitado a eternidade de Deus. “Em um tempo que é medido somente pelo cronômetro, nada pode desabrochar”, diz o autor. E acrescenta:
“O tempo mensurável obriga-nos a ficar em um cotidiano rígido. O deus Kronos é um tirano. Hoje em dia, a maior parte das pessoas sofre, creio eu, a pressão de sua tirania. Mas o domínio do Kronos não leva a um aproveitamento efetivo do tempo. (...) Nenhuma novidade brota. Nada surge para ficar. Tudo passa freneticamente” (p. 13).

O termo Kairós fala do tempo em outra dimensão, tem a ver com o sétimo dia da criação em que Deus descansou de sua obra; diz respeito ao tempo da graça, ao dia da salvação. É o tempo qualificado pela encarnação do Verbo que irrompeu na história, “na plenitude do tempo”. Na perspectiva do Kairós , as horas não são as do relógio e sim as “horas de Deus” que nos fazem recordar que cada momento pertence a ele. Jesus, especialmente no evangelho de João, está profundamente sintonizado com a Hora de Deus em sua vida.

Nas tradições religiosas, os calendários têm essa função de garantir o kairós , de proteger espaços de liberdade de que o indivíduo tem necessidade para a sua saúde física e psíquica e que por si só teria dificuldade de preservar. Na tradição judaica e cristã, há uma verdadeira arquitetura do tempo em função não só do indivíduo, mas da comunidade. O tempo vivido em comum expressa a convicção de que o indivíduo não se basta a si próprio, nem a sociedade tem fim em si mesma e que ambos necessitam de uma dimensão de transcendência. Ao santificar determinado tempo à memória de Jesus, somos conduzidos para as fontes do nosso ser, onde a ditadura da economia e do consumo não nos atinge, e de onde podemos nos alegrar com a dádiva da Ressurreição de Jesus.

Quando na tradição judaica e cristã se consagram determinadas horas à oração, parte-se de uma relação com “o tempo em que Deus opera sua obra dentro de nós”, voltando a nossa atenção para o mistério de cada hora, associada às “Horas de Jesus”. Nos convida a “libertar o nosso tempo, que estamos ocupando com o trabalho, para deixar espaço para a oração” (p. 25). Anselm nos lembra que “é um desafio renovado deixarmo-nos lembrar pela ‘Hora' da manhã, a ‘Hora' do meio-dia, a ‘Hora' da tardinha e a ‘Hora' noturna, de que o nosso tempo é uma dádiva, é o tempo da graça divina” (p. 24-25).

Segundo Anselm, as horas do Ofício Divino nos põem em sintonia com o ritmo corporal e cósmico: “Mais acertado seria aperceber-se do ritmo interno do próprio corpo e do cosmos inteiro, e nisso se engajar. (...) Quando me entrego ao ritmo do tempo, não sinto o tempo como um tirano, ao qual devo servir como escravo, mas como dádiva, a meu serviço, que me torna possível perceber o mistério da vida e experimentar também o tempo como um espaço no qual me sinto à vontade” (p. 47).

Anselm chama a atenção também para a reciprocidade entre o ritmo interno de cada pessoa e o ritmo comum da hora marcada, da música, dos salmos. Esse ritmo comum ao qual cada pessoa se entrega voluntariamente é algo salutar, é algo que contribui para ordenar a vida e para garantir que o tempo não seja preenchido apenas com o trabalho. Também nos proporciona estruturar a vida no Cristo: pela manhã, a imagem do sol nascente nos liga vitalmente à sua ressurreição; sob a luz de Cristo começamos o dia. No ofício da noite, ao chegar a escuridão, acendemos a luz das velas e pedimos que Deus nos envie a luz de Cristo para iluminar a nossa noite e nos libertar de todo sentimento de culpa.

Esse ritmo diário marcado pelas horas articula-se com o ritmo semanal em que para cada dia é atribuído um sentido o qual transmite uma atmosfera profunda em relação ao mistério das nossas existências. Por exemplo, toda quinta-feira evoca o mistério da última ceia e a sexta-feira nos relembra a Cruz de Jesus. No Brasil, quem celebra com o Ofício Divino das Comunidades recorda na segunda-feira a obra criadora de Deus continuada no trabalho humano, na terça-feira a vinda de Deus em nosso mundo, e na quarta-feira faz memória das ações de Deus na história. No sábado, além da dimensão escatológica e da comunhão com as comunidades judaicas, se faz memória de Maria, a mãe do Senhor. E há dias que trazem a memória de um santo ou santa, ícone que nos inspira e nos anima no seguimento de Jesus. No ritmo semanal destaca-se o domingo, dia consagrado ao Senhor em memória de sua ressurreição, dia de descanso e de contemplação, de soberania do ser sobre o fazer.

No capítulo 5, Anselm fala sobre a importância do ritmo anual que se estrutura com base no ano litúrgico. Ele diz:
“Por sua seqüência interna e seus diversos pontos altos, implica uma tensão saudável. Põe a minha alma em contato com os temas mais importantes dos quais ela precisa para amadurecer e crescer. De acordo com C. G. Jung, poderíamos chamar o ano litúrgico de ‘sistema terapêutico', que me introduz nas esferas mais altas e profundas da minha alma e confronta minhas feridas com o destino de Jesus, tentando assim curá-las. O ciclo das diversas festas apresenta as mais importantes imagens arquetípicas conhecidas pela alma humana. Com isso, as festas movimentam a alma. Quando as acompanhamos e celebramos conscientemente, esses festejos nos centralizam e nos ajudam a encontrar nosso verdadeiro eu” (p. 91).

“Para as diversas festas e temporadas festivas, a liturgia conhece uma série de rituais. Para mim, esses ritos são salutares e criam (...) uma outra atmosfera. Os rituais nos unem e nos orientam, todos juntos, para Deus; ajudam-nos a celebrar uma festa ou uma temporada festiva conjuntamente, expressando nossos sentimentos e desejos.” (p. 92)

“Os rituais trazem em si uma força própria e criam um espaço saudável, no qual se pode mergulhar. Mas ao lado dos ritos comunitários, cada monge desenvolve seus rituais totalmente pessoais, nos quais ele exprime seu relacionamento com Deus de forma que corresponda à festa do dia. Meus ritos pessoais me ajudam a viver essas festas litúrgicas de uma forma profundamente pessoal. Todo ano, esses ritos trazem de volta alguma coisa em que eu confio e me dá consistência; além disso, arrumam para mim uma casa na qual me sinto à vontade.” (p. 92-3)

De fato, os tempos e as festas que voltam a cada ano, com as mesmas leituras, os mesmos cantos e orações, não é um monótono repetir-se das coisas, mas uma representação sacramental do mistério de Cristo e da sua Igreja. Não se trata de simples reprodução dramática da vida terrena de Cristo, é memória ritual da salvação que se realizou em Jesus ‘uma vez por todas', à qual damos nossa renovada adesão neste tempo da nossa existência.
Esses ritmos marcados pelas horas, pelos dias e pelas festas anuais que interrompem o trabalho, conferem ao tempo uma “qualidade espiritual” que “nos conduz para fora da seqüência determinada por prazos, de horas submetidas a alvos e planos, e deixa-nos mergulhar no manancial divino da existência, em que uma nova vida flui ao nosso encontro” (p. 111).

Essa maneira de relacionar-se com o tempo nos permite desenvolver a arte da atenção, que segundo Anselm, é “a arte da presença total em cada momento, é estar totalmente presente naquilo que se está fazendo agora”, que é diferente de refugiar-se no trabalho. Anselm lembra o termo custodire, usado por São Bento na Regra, que significa prestar atenção, vigiar, zelar, observar conscientemente “sobre os atos da vida” (cf. p. 122).

O tempo do advento, especialmente, põe ênfase nessa atitude da vigilância, que não é o esperar passivo, mas a plena atenção aos sinais do agora, para perceber dentro de nós e ao nosso redor a possibilidade de reverenciar a quem esperamos, nas mais diferentes formas em que se manifesta. O advento enfatiza o que é inerente a outros tempos e momentos litúrgicos, sempre situados entre o ontem e o amanhã, no tempo intermediário da história, chamando a atenção para o momento presente, para a nossa responsabilidade de fazer no pequeno o que almejamos para o macro e a eternidade.

A arte da atenção nos permite lidar de modo saudável com o tempo garantindo-lhe “duas qualidades: lentidão e velocidade” (p. 174). A esse propósito, diz o nosso autor:

“Rapidez não é a mesma coisa que agitação. Muitas pessoas, homens e mulheres, confundem trabalhar com levantar poeira. Estão constantemente estressados. Mas o que empreendem não dá nenhum resultado. (...) São agitadas e apressadas porque não estão concentradas nem atentas àquilo que estão realizando. Estão inteiramente dilaceradas. Por isso, um pressuposto essencial para se lidar bem com o tempo é alcançar clareza interna sem segundas intenções, (...) sem a preocupação de ter de se exibir aos outros ou tentar evitar qualquer erro” ( p. 163-4).

“A aceleração leva a uma exploração cada vez pior da natureza. A poluição do meio ambiente e a destruição de nossa terra têm de ser reparadas a altos custos” (p. 180).

“Não quero falar mal do tempo de relógio nem da fidelidade a um compromisso. É algo que tem muito sentido, ainda mais em um mundo cada vez mais complexo. Sem mútua combinação, marcando-se com precisão os encontros, nossa convivência hoje se tornaria um caos. (...) mas o tempo do relógio não pode tornar-se a única forma de tempo” (p. 208).


[1] Anselm Grün é monge beneditino de uma abadia na Alemanha, autor de muitos livros sobre espiritualidade publicados em 28 idiomas. Outras obras do autor: O céu começa em você , publicado pela Editora Vozes; Espiritualidade a partir de si mesmo , Editora Vozes; As exigências do silêncio , Editora Vozes.

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