Notas sobre o aprofundamento da participação de leigas e leigos cristãos na política

 Euri Ferreira[1]

           


A Doutrina Social da Igreja Católica iniciou-se após a Revolução Francesa. Começou com a ação de grupos católicos ligados a ações sociais da comunidade em que estavam inseridos com a intenção de se denunciar uma situação de injustiça, pressionando a Santa Sé, para que esta tomasse uma posição oficial diante desses problemas. A partir daí a Igreja lança seus documentos e se posiciona firmemente contra essa situação. Convém destacar que em sua história de 20 séculos não poucos de seus membros já movimentaram seus discursos no âmbito social. Aliás, a comunidade cristã nasce e se firma no serviço ao bem comum, na partilha dos bens e no acolhimento dos mais necessitados.

De fato, a construção de uma sociedade solidária que pensa na defesa de sua classe minoritária só tem sua fase de acabamento quando cristãos e cristãs, membros da Igreja Católica, interpretando os documentos da Doutrina Social da Igreja, salientam suas características importantes e delas façam uma aplicação no contexto em que estão inseridos. A dinâmica está em começar por atitudes pessoais, depois na família, em seguida na vizinhança, no bairro, na comunidade em que se congrega etc., até chegar ao ponto de todos refletirem na questão da mudança de paradigmas para uma sociedade justa, sustentável e transmissora de confiança para seus habitantes. Há estruturas criadas em que não se permitem verificar essas características, o que acabam não sendo modelos a serem seguidos, e há pessoas que pensam que vivemos numa perfeita normalidade a partir deste modelo de lutas de classes, por exemplo.

Os apelos sociais são os primeiros pontos a serem observados na conjuntura da Doutrina Social da Igreja. Então o teólogo, além de muita fé, precisará de muita ciência antropológica. Quero dizer, terá de revestir-se do papel questionador e analisador social a fim de que este, à luz do Evangelho e das propostas da Igreja, pense num mundo mais humano. Ou será ao contrário?

Neste artigo pretendo fazer destaque da posição da Igreja Católica ao orientar que seus membros ingressem ou atuem no mundo político, seja competindo no desejo de serem parlamentares, seja atuando nas instâncias político-partidárias de sua sociedade. O artigo não tem por fim elucidar a questão, requer outros pontos e luzes, mas sua intenção é trazer à tona a reflexão do campo de atuação de membros da Igreja quando estes cruzam caminhos entre a fé e o serviço ao bem comum, que é a política.

Segundo as orientações da Doutrina Social da Igreja Católica “os partidos políticos são chamados a interpretar as aspirações da sociedade civil, orientando-as para o bem comum (DSI, 846), oferecendo aos cidadãos a possibilidade efetiva de concorrer para a formação das opções políticas”[2]. O candidato, indicado pelo partido, e futuro representante da sociedade nas instâncias políticas (Câmaras municipais, Assembleias Legislativas, Congresso, Senado e Presidência da República) torna-se, então, o mediador entre a sociedade e o poder público, por isso grande influência exercem os partidos políticos na condução desse processo, salvo quando a sociedade é per si consultada via referendum, o que não dispensa também a mediação e a participação políticas. Sendo assim, esses institutos, descartam as possibilidades de que cidadãos e cidadãs possam ser interpelados diretamente em vista das escolhas de maior relevo da vida social.[3]

Dadas as devidas proporções, é perspicaz que as instituições que formam a sociedade como um todo atuem no sentido de preservar as relações sociais, principalmente nas que tangem ao mundo político, em que por sua vez cabe a este o exercício da legislação, da execução, aplicação e fiscalização efetiva destas relações. Dentre essas instituições estão as representativas de ordem espiritual e religiosa. Destaca-se com enlevo a Igreja Católica Apostólica Romana, que, dada sua história de contribuição para o pensamento religioso e espiritual, para a evangelização dos povos americanos, para o crescimento na fé, de fundação de cidades e de instrução desde sua presença no Brasil ao longo de cinco séculos, possui, por sua configuração, autonomia e fins próprios. Aliás, é bom que destaquemos que fazem parte de sua doutrina sérias orientações para a participação efetiva de seus fiéis na atuação do mundo político, às quais já citamos como objeto de nosso artigo. Faz parte da demanda da Igreja Católica respeitar a legítima autonomia da ordem democrática no que condiz com a estrutura da comunidade política, permanecendo sempre como parte de sua tarefa não entrar no mérito dos programas políticos, a não ser por eventuais consequências religiosas ou morais[4], dado seu caráter existencial, o serviço da evangelização e a propagação da fé.

Merece destaque afirmamos que, tanto a Igreja como a política devem estar a serviço e totalmente disponíveis em colaborar com os cidadãos e cidadãs, a fim de que, expressando-se em formas organizativas sociais, manifestem o caráter público de se expressarem livremente quando ensejando entre si uma sã colaboração, tomando-se em conta as circunstâncias de lugar e de tempo, fazendo-se solidária com o gênero humano e com toda a sua história.[5]

Em carta dirigida aos chefes de Estado, o papa João Paulo II elenca alguns atos de liberdade de atuação da Igreja Católica, não no sentido de reivindicar, mas de fazer-se preservar tal liberdade adquirida ao longo da história e da sua atuação milenar contribuindo para a construção das sociedades, não só no âmbito religioso, mas também nas áreas de educação, sanitária e de caridade social,[6] de modo que esta atuação também se qualifique como mão dupla, ocasião em que, seja Estado seja Igreja, possam livremente atuar dentro das características de seu papel de princípio, sem a existência de obstáculos que provenham tanto de um como de outro.[7]

O livre exercício da atuação política de seus fiéis é cunhado na linha do pensamento de sua atuação, e, no seu conjunto doutrinário que é chamado de Magistério, a Igreja preocupa-se na representação de seus fiéis no campo político agindo também com preocupação ardorosa a fim de que não se mire propostas legislativas de modo que possam vir ao encontro danoso e moralmente contrário à sua fundamentação da fé e da moral.[8] A Igreja mesma toma como ponto de partida o exemplo de muitos de seus fiéis seguidores ao longo de sua história que, renunciado a propostas de políticos que os perseguiam a fim de abdicar de seus aributos ligados ao projeto do Evangelho de Jesus, morriam como mártires em nome da fé e da defesa da vida de outros. Foi assim ao longo de 20 séculos de existência, e ainda continua. Apenas para citar, é chamativo a quantidade de membros religiosos da Igreja que morreram por defenderem causas ligadas à terra, ecologia, indigenista etc.

Quando a Igreja permite que seus fiéis atuem no campo político, o faz com total liberdade, permitindo que estes ajam como integrantes dela, isto é, como leigos e leigas, posto que estes reconhecem de fato as estruturas fundantes de um seguimento religioso, como é o cristianismo, em que é imprescindível se ter como valor a defesa e a promoção da vida e aos demais direitos da pessoa humana, sobretudo porque isso não são apenas valores de uma esfera religiosa, mas faz parte de todas as sociedades e instâncias nelas instituídas. Aliás, quando de sua fala eloquente advinda de seu Magistério, a Igreja o faz não desejando exercer um poder político, mas no sentido de iluminar ou relembrar a seus fiéis, instruindo-os como o é de sua própria natureza, para o bem comum e sobretudo àqueles que se dedicam a uma participação na vida política, fazendo com que esses operem neste campo sempre ensejando a caridade, o serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum.[9]

Por ocasião da comemoração do 80º aniversário da Encíclica Rerum Novarum (A sede das inovações), do papa Leão XIII, em que este tratou de dizer à Igreja como estava a vida da classe operária no mundo, o papa Paulo VI escreveu a Carta Apostólica Octogesima adevniens, que trata do compromisso sócio-político dos cristãos e cristãs. Nela Paulo VI afirma que dificilmente as instâncias políticas encontrem em seu bojo uma corrente única que coadune com as exigência da fé, mas que o cristão que nelas se engaja seja estimulado a realizar sob formas atentas o esmerado e desejoso serviço ao bem comum, inclusive com os fins espirituais do ser humano.[10] Por isso mesmo é que na mesma Carta se instrui que sempre que um dos membros leigos da Igreja se engajem no serviço político, seja na atuação como parlamentar, seja na atuação partidária, o faça como aderente pessoal, nunca por imposição de sua demanda, e sua decisão seja legitimada com a fé e com os valores cristãos dela recebidos.[11] Porém, a escolha a este serviço deve ser sempre iluminada pelos princípios que advém da reflexão para julgar tal escolha e para agir, baseados na doutrina social da Igreja.[12]

Pois bem, para finalizar, é apraz afirmar que quando a Igreja colocou no seu bojo o discurso da justiça social, por força e preocupação do Evangelho de Jesus ser acolhido nas sociedades e advinda do incentivo da participação de seus membros no campo político a fim de que a proposta do Evangelho se torne real e eficaz, não o faz por mera e simples formalidade. Ela suscita, sobretudo, o respeito pela pessoa humana, isto é, sua dignidade, que é sempre o fim último de uma sociedade.

Na Doutrina Social da Igreja o primeiro dado a ser considerado é a dignidade da pessoa humana, o que supõe relações de igualdade entre os seres humanos. Para tanto, é necessário que essas relações se façam ser reconhecidas e tuteladas pelas instâncias que regem uma sociedade. Aliás, todos são dotados de uma mesma e única igualdade, diz nossa Constituição Federal. A justiça social tem que contemplar isso, o que supõe também respeito às diferenças de idade, de gênero, de capacidades, aptidões físicas, aptidões intelectuais, de raças etc. Contemplar e respeitar o diverso de mim, sem reduzir as pessoas, sem desqualificá-las, é elemento urgente para um bom começo de causas que podem adentrar o mundo da política.

O desejo latente de se resgatar a dignidade humana é capaz de colocar todos num mesmo patamar, o que permite também ser solidários com os mais próximos. Este não é apenas um desejo e uma vontade da Igreja Católica, é também um dos traços da política, a forma mais perfeita da caridade para tornar uma sociedade mais justa possível. Entre a dignidade da pessoa humana e a solidariedade, a Doutrina Social da Igreja destaca outros princípios como a primazia do bem comum compatível com a dignidade humana (não se pode nem ter de menos nem ter de mais); a destinação universal dos bens; a primazia do trabalho sobre o capital; a subsidiariedade, em que cada qual tem o seu papel, a sua competência, respeitando-se os papéis de cada um. Todavia, outros elementos já podem ser acrescidos neste conjunto, como a preocupação ecológica e a criação e manutenção de bases sustentáveis para o ser humano usufruir dos recursos naturais sem degradá-los. O que está em jogo é o ser humano tendo em vista a sociedade à qual ele pertence e as instituições que se aprimoram cada vez mais para oferecer ao ser humano o básico para se tornar participante e membro desta sociedade como cidadão carente de toda carga necessária para sua justa sobrevivência.

Digamos que, com a Doutrina Social da Igreja, procura-se afirmar que a presença da Igreja no campo político é uma exigência da própria fé. Numa sociedade em que cada vez mais seus membros buscam por uma espiritualidade, articular fé e política não tem sido uma tarefa fácil. Ha muitas ofertas de pseudocaminhos espirituais ou enganadores, persuasivos e até aproveitadores da fé. A separação entre fé e vida cotidiana é um dos mais graves erros de hoje. A fé é um elemento vital para se superar toda forma de privação de vida. É preciso encararmos a questão e oferecermos fomento para a construção de um diálogo possível.



[1] Mestre em Teologia, com concentração em Liturgia, pela PUC/SP. Especialista em Liturgia pelo IFITEG-GO. Graduado em Teologia e Filosofia pela PUC/SP. Músico. Membro da Rede Celebra de animação litúrgica. Membro do Corpo Eclesial de Compositores da CNBB. Membro do Universa Laus. Agente da Pastoral Litúrgico-musical na Paróquia Santo Antônio do Bairro do Limão, Arquidiocese de São Paulo. Assessor Editorial da Editora Paulus.

[2] Política e posicionamento político à luz do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, 413.

[3] Idem, 413.

[4] Idem, 424.

[5] Concílio Vaticano II, Exortação Apostólica Gaudium et spes, 76, apud Política e Posicionamento Político à luz do Compêndio social da Igreja Católica. 415-426.

[6] Cf. João Paulo II, Carta aos Chefes de Estado firmatários do Ato final de Helsinque (1º de setembro de 1980), apud ibidem, 426.

[7] Política e posicionamento político à luz do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, 427.

[8] Congregação para a Doutrina da Fé, Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação dos católicos na vida política (24 de novembro de 2002), 4: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano, 2002, p. 9, apud Política e posicionamento político à luz do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, 570.

[10] Cf. Paulo VI, Carta apostólica Octogesima adveniens, 46.

[11] Idem, apud Política e posicionamento político à luz do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, 573.

[12] Cf. Paulo VI, Carta apostólica Octogesima adveniens, 4.


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