Ofício Divino, oração do povo de Deus


Eurivaldo Silva Ferreira (org.)


Introdução 
Na esteira do tempo que marca nossa existência o relógio nos dá a consciência de que somos marcados por uma finitude, embora sempre estejamos em conflito com o relógio. Somos então marcados pelo aceleramento dos acontecimentos. Assim, nossa identidade se molda pelo resultado daquilo que aconteceu em nossas vidas, pois somos aquilo que escolhemos para viver, isto é, somos fruto de nossas escolhas.
Neste ritmo acelerado, perguntamos como dar conta de uma espiritualidade que nos proporcione um desaceleramento? Como permitir que a graça de Deus nos toque enquanto vivemos e corremos contra o tempo?
Entendemos que a liturgia pode corresponder a essa necessidade. Partindo-se do acontecimento salvífico que é celebrado na liturgia – o acontecimento Jesus Cristo, inserido no tempo para salvá-lo – buscamos um equilíbrio resultante da ação divina que atua em nós e de nossa ação inserida no espaço cronológico de nossa existência. É a respeito desta ação divina, deste trabalho de Deus em favor da humanidade, que trataremos hoje.

Ofício divino, uma ação de Deus em prol do mundo
Os antigos compreendiam o tempo como um elemento pelo qual se deve fugir. Na concepção grega, o kairós era o tempo ideal, o tempo de ser alguém e de estar livre das ameaças do chrónos, o tempo que devora as pessoas.
As religiões mistéricas surgem para auxiliar essa concepção, de que o tempo a um fim, e ação divina corresponde para nos livrar deste fim, ou seja, há algo de transcendente que atua em nossa existência, para o qual nos dirigimos.
O judaísmo, bebendo desta fonte, entendeu que o tempo é marcado pela ação de Deus que interfere no jeito de a natureza se recriar. Para o Israel antigo, a natureza, com sua criação, é o objeto de sua sobrevivência. Nela Deus age e dela se retira seu sustento. Assim, era preciso agradar a Deus, com ritos e cerimônias, a fim de que Deus suprisse a terra com os dons necessários à sobrevivência de tudo e de todos.
É nesse pano de fundo que se entende que Deus caminha com seu povo, libertando-o das ações contrárias à sua existência. O Salmo 90 pede a Deus que saibamos contar nossos dias, entendendo que Deus atua no controle do tempo a nosso favor.

O entendimento do tempo para o judeu
Diferentemente da concepção grega, o judeu percebe Deus interferindo no tempo, no hoje de sua existência. A liturgia do antigo Israel é então celebrada nesse contexto. Não só o judaísmo, mas o cristianismo continua bebendo dessa concepção, por isso o calendário religioso judaico é marcado por celebrações especiais para festejar a atuação de Deus em favor das pessoas.
O judaísmo é possuidor de uma arquitetura e uma estrutura próprias de tempo. Para o povo de Israel, Deus se manifesta no tempo, e o eterno vai se moldando, acontecendo nessa referência. O Êxodo é então a referência fundamental do povo de Israel. Esse é o fato fundante do judaísmo, a libertação das mãos de quem o oprimia.
Na tradição judaica existe uma referência para o tempo, tendo como tripé o tempo marcado pelos ritmos diário, semanal e anual. Para Israel, é impensável deixar o dia passar sem referenciar o Criador. O ritmo diário é então marcado pelas horas da manhã e da tarde em que se presta o louvor a Deus e a ele se rende graças.
Para o judeu, no ritmo semanal se consagra o sábado. É o 7º dia, o dia da libertação, o dia do descanso de Deus, o êxodo por excelência. No rito judaico há um canto de elogio ao sábado, comparando-o a uma noiva de Israel. A noiva é a sua personificação, como povo escolhido.
No ritmo anual, as tribos judaicas voltam de ano em ano para oferecer seus presentes e ofertas no templo sagrado. Todas essas expressões rituais são para explicitar a marca do tempo. Logo, a liturgia judaica está construída a partir de fatos que aconteceram na história.

E no cristianismo?
Assim, na nossa tradição que bebeu da tradição judaica, a referência é o sol, pela manhã é símbolo da presença de Cristo Ressuscitado, à tarde é símbolo do Cristo que morre. Desta forma é que os primeiros cristãos entenderam que é o Cristo presente na vida da comunidade de fé, atuando na existência daqueles que creem.
No cristianismo, a vinda do Cristo na história foi lida no Novo Testamento como sendo a marca do tempo, de sua plenitude (cf. Ef 1,10). O tempo é então o lugar onde Deus realiza a salvação.
Marcos começa seu Evangelho dizendo que o “o tempo se cumpriu” e agora precisamos nos converter. Para Marcos, o tempo se cumpriu no Cristo.
João começa seu Evangelho com a noção de tempo: “no princípio era o Verbo”. Aquilo que era então eterno, definitivamente habita o transitório. A noção de tempo é totalmente humana e não divina. O NT jamais projeta para a eternidade aquilo que temos que fazer agora.
Como no judaísmo, as celebrações cumprem o papel de explicitar a função do tempo. A liturgia faz a gente parar para ressignificar o tempo. O calendário que rege o Ano Litúrgico é um criador de pausas, ressignifica o tempo com o auxílio da liturgia. A memória faz entendermos a história como um protagonismo de Deus que ajuda a relativizarmos nosso fazer: ‘foi Deus e não eu quem atuou nisso’. Olhar o passado e reconhecer nas coisas e nos acontecimentos a intervenção de Deus é uma das tarefas da liturgia.
É a partir dessa concepção que fazemos memória das coisas que Deus faz a nosso favor no decorrer das horas do dia.

Rezar no decorrer das horas do dia
Os cristãos se organizaram para orar a Deus durante o dia, baseando-se na concepção judaica de dedicar uma parte do dia para a oração. O Ofício Divino busca então santificar o tempo, por isso ele acompanha o curso do dia e do ano cristão. Desta forma nasceu o que chamamos hoje de Ofício Divino, uma oração que está ligada com as horas do dia, mas que se articula com o tempo da semana e do ano. É Ofício Divino porque se trata da ação de Deus atuando no tempo daqueles que creem e em favor do mundo, recriando-o continuamente. O Ofício está na linha da rotina. A rotina dá estabilidade ao cotidiano.

Rezar celebrando, como numa liturgia
A liturgia é então o consenso da Igreja a respeito da fé, logo, a liturgia é a fé em atos. A liturgia supõe a fé. É necessário um mínimo de catequese para entendermos a liturgia. Se ela supõe a fé, logicamente alimenta a fé. Por isso o CV II restaurou o catecumenato como itinerário para a compreensão da fé. Embora com o tempo o Ofício tenha perdido seu caráter celebrativo, o CV II o recuperou, incentivando-o ofício como ação celebrativa, isto é, liturgia. Da mesma forma restaurou outros ritos e outras formas de celebrar. Ele faz parte desta tradição de Igreja de alimentar a fé, celebrando durante as horas do dia a atuação de Deus, vista pelos cristãos na plenitude do Filho, que é manifestada à toda humanidade.
O Ofício é contemporâneo da missa, não nasceu com os monges, mas segundo os relatos de Etéria, uma testemunha da Igreja de Jerusalém, nasceu com o povo. Até o século VIII no Egito não era costume ter missa todos os dias. A missa era exclusividade do domingo, e nos dias da semana rezava-se o Ofício Divino. O Ofício Divino tornou-se uma mística para os cristãos, pois ele nos propõe um desacelerar, contrapondo com o desritmo do mundo. Hipólito de Roma orientava nesse sentido. O ofício cuida de nossas raízes primitivas, permitindo que o louvor tenha um sabor de gratuidade, enquanto que a ação de graças aponta para um motivo, contando as coisas que Deus fez na história. Quem o reza durante o dia já se considera como que tendo um ganho e um acúmulo espiritual para a fé, pois tem a oportunidade de se lembrar de Jesus e de sua páscoa acontecendo na sua vida.
O Ofício Divino que é celebrado na parte da tarde tem seu parentesco com a Eucaristia, como ação de graças e memória da ceia. É a oração em que oferecemos o sacrifício espiritual de nossas vidas. Nela trazemos nossas mãos vazias, abertas, mas repletas de nossa existência, de nossas fragilidades e de nossas ansiedades, além de nossas vitórias.
Uma regra básica para se ter o Ofício Divino como fonte de espiritualidade é a cuidar bem da ritualidade, isto é, dos ritos, prestando atenção e caprichando na linguagem, nas poesia, na oração e na música, além de se prestar atenção naquilo que se faz, ‘que a mente acompanhe a voz’, dizia São Bento em sua regra; para isso o rito tem que ser bem feito. Com certeza, os ministérios alcançarão um bom jeito de fazer com que o toda a comunidade, povo sacerdotal, possa participar bem desta oração, fazendo com que ao longo do dia a oração vá ressoando dentro de cada um.
No Brasil, o Ofício Divino foi revestido de uma linguagem latino-americana, característica do povo mais simples e das comunidades que refletem uma piedade e uma espiritualidade próprias. Com bastante fé e um pouco de criatividade, pode-se fazer com que a oração da Igreja se torne oração de todo o povo cristão.

O Cristo que ora em nós
No Ofício tomamos como referência o Cristo que ora em nós, através de hinos e salmos. Nele é que fazemos nossas súplicas e expressamos nossos anseios e desejos. Pela sua encarnação, o Filho de Deus trouxe ao mundo a louvação eterna que ele dirige ao Pai no seio da Trindade. É por ele que louvamos ao Pai, Senhor de toda criação. E é por ele que desejamos que toda criação seja liberta da corrupção e da maldade, até que um dia Deus seja tudo em todos. É no Cristo que a Igreja ora sem cessar, assim como ele rezou antes de morrer, comprazendo sua vida a uma vida de oração sem cessar ao Pai. O mais belo dos filhos dos homens, diz o Salmo 44, dedica ao seu Deus um poema de louvor. Do seu coração, transbordam palavras sublimes e sua língua é como a pena de um ágil escriba. Este poema nunca acabará e continua para sempre. Jesus mesmo se valeu dos salmos para expressar a sua agonia e aflição na cruz. Com as próprias palavras sagradas nós entendemos a entrega do Filho como a beleza escrita no mundo através de sua morte de cruz.

Estrutura do Ofício Divino
1. Chegada – refrão meditativo (ajuntamento dos ‘cacos’, transição)
2. Abertura – versos sálmicos, feita por quem preside
3. Recordação da vida ou revisão do dia (o que trazemos para esta oração?)
4. Hino – ligado à hora ou ao tempo litúrgico
5. Salmos – expressam a oração da comunidade, ligando-o à sua existência. O Cristo ora na boca de quem salmodia.
6. Ressonância – silêncio – meditação
7. Leitura bíblica (Evangelho ou outra leitura)
8. Cântico evangélico (de manhã: Zacarias; à tarde: Cântico de Maria; à noite, antes de dormir: Cântico de Simeão
9. Preces – Pai Nosso e oração
10. Bênção e despedida

Os ministérios no Ofício Divino
- Quem coordena: preside a assembleia, canta os versos de abertura, abre para a recordação da vida e os salmos, faz as orações e as preces, introduz o Pai Nosso, a oração e a bênção final.
- O leitor: proclama da estante da Palavra a leitura.
- Os cantores: cuidam de sustentar o canto do povo, às vezes, intercalando com a assembleia essa função.
- Os acólitos: cuidam do espaço, preparam o incenso, acendem as velas.
- A assembleia, que é também ministerial, participa do louvor e da ação de graças ao Pai, ora silenciando, ora alternando o canto dos salmos, como que num diálogo de escuta e palavra.

A mística da Oração das Horas
O compromisso comum, da hora marcada, das músicas, dos salmos, ao qual cada pessoa se entrega voluntariamente, é algo salutar e contribui para ordenar a vida em uma lógica diferente, desenvolvendo uma nova maneira de se relacionar com o tempo. A liturgia nos forma não pelo lado racional, mas pela via simbólica. O melhor que nós fazemos na liturgia é ter a certeza de ela nos forma para a vida. Ao interromper o ritmo da produção, toma-se consciência que o tempo não é apenas  krónos, isto é, o tempo medido pelo relógio e preenchido com o trabalho sob a pressão do mercado; ao contrário, o tempo pode ser vivido como kairós, a saber, o tempo em que Deus opera dentro de nós e no coração da história, a sua obra, independente do nosso esforço.
Neste ritmo diário somos lembrados pelas horas, que o tempo não é o tirano, ao qual devemos servir como escravo; existe uma outra maneira de se relacionar com o tempo, a partir do movimento cósmico, com sua alternância de dia e de noite, de luz e de trevas, mais de acordo com as batidas do coração do que com o ritmo frenético das máquinas. As imagens de luz e trevas voltam nossa atenção ao Mistério da hora, em relação às “Horas de Jesus”, e nos faz descobrir dentro das contradições do nosso próprio tempo a ação amorosa do Pai, que faz brilhar em nosso mundo a luz de Jesus Cristo, nosso Salvador.

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