Um hino de paz para o mundo

Paulo Costa Lima De Salvador (BA) Não estaria o mundo precisando de hinos de paz? Ou pelo menos de um bom hino da paz? Não seria essa uma urgência a ser tratada pela ONU, através da UNESCO? A idealização de um hino que pudesse funcionar em todo o mundo como um verdadeiro jingle de indução emotiva e apelo racional pelas vantagens da paz - sem diluir a ideia de nação e pertencimento. Ao início de cada conflito armado as pessoas se reuniriam nas praças e começariam a cantá-lo até que a paz retornasse... Pois bem, vejamos: Os hinos nacionais são experiências sensoriais complexas. Estão diretamente conectados ao sujeito coletivo e suas emoções. O emaranhado de mensagens que estrutura essas vivências culturais é elemento formador do imaginário de cada país, e do mundo. Afinal, os hinos são celebrados regularmente por bilhões de pessoas. Olhando esses textos com todo respeito que merecem - pelo cabedal de união e solidariedade que proporcionam aos seus povos -, mas também com isenção analítica, ficamos preocupados com uma questão que daí emerge: para haver nação deve haver guerra? Na construção imaginária da pátria as referências bélicas parecem ser 'condição necessária'. Um breve percurso pela literatura dos hinos demonstra isso com facilidade. Comecemos por casa. Em nosso belíssimo hino, lá pelas tantas o eu lírico verde e amarelo apregoa:
Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, à própria morte.
É uma construção poética sofisticada e emocionante. Ela reúne o apelo da ética, da justiça e da Mãe. Nessa altura o filho não teme mais nada... Ora, bem sabemos que cada hino tem seu contexto, seu invólucro de ruptura e de instabilidade, e sua justificativa histórica. Mas, aparentemente, penhorar a vida dos filhos-cidadãos parece ser uma estratégia absolutamente indispensável, e tem sido uma marca recorrente atravessando latitudes e longitudes. Perceber isso, hoje, é se dar conta da quantidade de energia que foi necessária para ultrapassar a ordem medieval - e no caso das periferias, mergulhar na ordem colonial. Mas voltando ao percurso dos hinos, verificamos que com os nossos vizinhos argentinos a marca de nacionalismo e morte surge no finalzinho do texto:
Coronados de gloria vivamos
O juremos com gloria morir.
Enquanto no hino brasileiro o eu lírico se dirige à Mãe Pátria, e os filhos são terceira pessoa, no hino argentino é com a primeira pessoa do plural que se faz o juramento - nós. O pior é que eles jogam com essa garra mesmo. Ninguém tem sossego até os 48 minutos da prorrogação. Subindo na direção do México percebemos que ao invés da indução emotiva, ou juramento coletivo, o que temos é uma convocação explícita -aliás, como na Marselhesa, que parece ser o umbigo heróico de quase tudo isso:
Mexicanos al grito de guerra
El acero aprestad y el bridón,
Y retiemble en su centro la tierra
Al sonoro rugir del cañón.
O que dizer de Andorra, que é um dos menores países do mundo, porém com a maior expectativa de vida do planeta - 83,52 anos -, bradando contra seus incautos desertores?
Empenhemos nossa palavra de honra
Lutar por nossa salvação
E só um traidor nato desiste da luta
No Chile, é a bandeira que conclama ao sacrifício:
con tu nombre sabremos vencero tu noble,
glorioso estandartenos verá combatiendo, caer.
E o nosso querido Portugal?
Às armas! Às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões marchar, marchar!
No caso do Canadá, a referência aparece de forma mais velada, mas ainda assim se faz presente:
O Canada, westand on guardfor thee
(Oh Canadá, estamos em guarda por você...)
E pasmem, no hino do Vaticano também aparece a ideia de combate e de luta - mesmo que pela verdade e pelo amor:
Sois o conforto e o refúgio daqueles
que acreditam e lutam,
Força e terror não prevalecerão,
Verdade e amor reinarão (You are the comfort and the refuge of those /
who believe and fight Force and terror will not prevail, /
But truth and love will reign)
Seria, dessa forma, impossível conjugar nacionalismo e pacifismo, ou pelo menos, discurso pacifista? Como deveríamos abordar essa questão numa era que se auto-define como prestes a ultrapassar a meta-narrativa da nação e do patriarcalismo? Patriarcalismo? Sim, afinal, as imagens recolhidas nesses poucos exemplos fazem ecoar velhos símbolos da testosterona: clava forte, morrer com glória, grito de guerra, canhão, palavra de honra. Como seria a defesa das nações, a partir de uma ótica predominantemente feminina, pós-testosterona ?(1) Existe um hino feminino? Dos hinos que pude ler, sobressai a delicadeza do japonês: que você (Japão) possa durar mil anos, oito mil anos, - sabemos que o número 8 é símbolo do infinito -, e que possa durar até que o mar transforme em pepita coberta de grama um grande rochedo... (tradução aproximada) Existe sim, justificativa para propormos um hino de paz para o mundo. As crianças ouviriam esse jingle desde tenra idade, e todos os astros da música mundial seriam envolvidos na propagação dessa onda. Depois de conseguida a paz mundial, aos poucos o hino iria sendo esquecido, cumprindo dessa forma sua nobre missão: afinal, só fala de paz e de sua necessidade quem não a conhece plenamente. -PS-1: os hinos foram consultados através do site abaixo, e em alguns casos a tradução para o português foi feita por mim mesmo (sem muito esmero, apenas para mostrar as ideias contidas no trecho): http://fr-scubabrasil.sites.uol.com.br/bandeiras.htm Curiosidades:PS-2: O hino da Espanha não tem letra! PS-3: Vale a pena conferir a obra Dona nobis Pacem - A Hymn for World Peace de David Fanshawe, para soprano, coro infantil, coro e orquestra, a partir de comissionamento feito por Nicholas Oppenheimer em 1994, diretor da De Beers Diamond, na África do Sul. -(1) Nem sempre a relação entre guerra e falicismo convence. Minha amiga, a escritora Cleise Mendes, observou 'en passant' que as mulheres também podem ser mui guerreiras e aguerridas. Registramos esse reparo. Paulo Costa Lima é compositor. Pesquisador pelo CNPq. Professor de composição da Universidade Federal da Bahia.www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/

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